“Jacob compreende o mundo tendo que colocar as coisas para fora. Ele
exorciza, expulsa para fora, para poder compreender e dominar. Israel, ao
contrário, traz para dentro. Enfrentar Deus e homens e prevalecer significa
integrar ou tornar inteiro internamente. Israel não mais verá seu irmão como
inimigo ou limitador. Não será um “outro” que terá responsabilidade por causas
ou consequências. Um Israel que tem sentimentos em relação ao outro,
sentimentos muitas vezes de ódio, mas que só briga consigo mesmo.” 1
Rabino Nilton Bonder
A segunda vez que encontramos a ação de “dar o
dízimo” é no texto de Gênesis 28 2, que relata o ocorrido com
Jacó, quando depois de um sono atribulado, assombrado pela presença Divina,
acordou amedrontado dizendo estar na “Casa de Elohim”. Diante da
terrível presença de Deus, Jacó disse que se tudo desse certo na saída da casa
de seu pai, e se durante a caminhada, distante de sua família primordial, tudo
lhe fosse bem, e sua volta fosse vitoriosa e pacífica, ele daria ao Eterno todo
o seu dízimo. Mais uma vez encontramos o dízimo ligado a uma tragédia familiar.
“E Jacó fez um voto, dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta
viagem que faço, e me der pão para comer, e vestes para vestir; e eu em paz
tornar à casa de meu pai, o SENHOR me será por Deus; e esta pedra que tenho
posto por coluna será casa de Deus; e de tudo quanto me deres, certamente te darei
o dízimo.” 3
A história de Jacó é conhecida pela maioria dos religiosos. Em síntese,
sua vida até aquele momento era uma tragédia. Embora gêmeo de Esaú, Jacó não
era o primogênito, ele nascera depois de seu irmão, agarrando-lhe o calcanhar.
Por isso não possuía o direito a bênção dos primogênitos. Porém, esperto
negociador, comprou do irmão faminto, por um prato de comida, a possibilidade
de ser abençoado. Depois, com sua mãe Rebeca, a amada de Isaque, tentou burlar
os sentidos do velho pai que se deixou enganar pela farsa grosseira. Antes de
morrer Isaque desejava abençoar seu filho preferido, Esaú, mas acabou
abençoando o filho preferido de Rebeca, Jacó. Após ser abençoado por seu pai,
aquele homem precisou fugir da ira de seu irmão, que desejava matá-lo.
Tragédias, tragédias, tragédias. Todas em uma só família. A família de Abraão.
Na fuga, o neto do patriarca encontrou-se com o Deus de seu avô, que
ignorando os malfeitos de Jacó, se revelou a ele e o abençoou, seguindo
a mesma diretriz das bênçãos dadas por Isaque, o filho do útero de Sára.
É interessante perceber, que Jacó propôs ao Senhor, retribuir aos outros,
o que recebesse do Altíssimo. Um dízimo originado por uma tragédia. Proteger na
empreitada; proporcionar alimento – pão e vinho –; manter sua dignidade com
roupas não gastas; e um retorno pacífico “a casa paterna”. Essa última,
por meio do restabelecimento da harmonia e do vínculo familiar entre ele e seu
irmão Esaú e com seu pai Isaque. O final do voto é revelador: “... então tu,
Adonai, serás o meu Deus.”.
Isso implica dizer que Jacó iria retribuir em igual medida tudo que
recebesse de Deus. Ter Deus era ser Deus para quem precisasse. Essa foi
a máxima do dízimo de Jacó. Aparentemente diferente do dízimo de Abraão, porém
essencialmente igual. Em outras palavras, o que Abraão fez, foi agradecer a
Deus com sua parte nos despojos, por Ele ter mantido sua família segura. Jacó
por sua vez, disse que iria retribuir de igual maneira tudo que recebesse do
Senhor. Retribuir não é pagar, retribuir é dar aos necessitados, como gratidão,
por tudo que recebemos do Altíssimo.
Realmente não é difícil perceber a prática de retribuir com o dízimo, a
Misericórdia de Deus a todos que necessitam de misericórdia. Receber a ajuda de
Deus em nossa vida significa oferecer Deus a quem precisa de ajuda. Esse “oferecer
Deus”, estava distribuído nas várias solicitações que Jacó fez ao Senhor de
toda a terra.
Se somos protegidos por Deus em nossa caminhada pela vida, precisamos
proteger os outros na caminhada de suas vidas; se recebemos alimento de Deus,
precisamos alimentar nosso próximo; se recebemos de Deus vestimenta, dignidade
e honra, precisamos agir de igual maneira para com aqueles que nos pedem; se a
face de Deus está voltada para nós e esse olhar atento do Criador nos abençoa
com paz, somos obrigados a fazer o mesmo: olhar com bênção aos que iguais a
nós, precisam de paz. Fazendo assim nos tornamos filhos do Pai Celestial. O
dízimo, é sempre fruto de uma tragédia familiar, e ainda assim é resultado do
reconhecimento ao cuidado de Deus com nossa família, retribuímos a bênção
recebida dando o dízimo a quem precisa.
Depois que Jacó enfrentou suas tragédias familiares com suas quatro
mulheres e seu sogro, ele teve de enfrentar um último inimigo, uma última
batalha no processo de iniciação para se tornar um patriarca igual a seu avô.
Ele teve de enfrentar a si mesmo. O texto da batalha com o anjo do Senhor,
tem um forte componente onírico, onde Jacó teve a “perna desconjuntada, mas
ao final quem manquejava era Peniel”. 4 Ao dar seu
dízimo, Jacó teve de vencer a si mesmo, deixando de ser Jacó e se transformando
em Israel.
O episódio bíblico, que narra à luta física de Jacó e o Anjo do Senhor,
carrega em si uma grande similaridade com a luta ética de Abraão com Shadai.
Jacó enfrenta seus medos fisicamente, Abraão enfrenta os seus eticamente. O
enfrentamento que Jacó tem com seu Deus provém do temor que ele possuía de
encontrar com o irmão que lhe jurara morte. Para Jacó deter a morte tinha a ver
com lutar contra ela, para impedir que ela o matasse. A morte que Jacó temia
vinha de seu irmão, e podemos até entender que ela era o próprio irmão.
No confronto físico de Jacó com Peniel, o Divino também representava a
morte, que representava Esaú. Por isso lutar contra Deus e contra homens. Em
uma observação cuidadosa, Jacó lutava contra si mesmo pois Esaú era seu irmão
gêmeo. Ele também lutava contra o Deus que jurara servir. Aquele era o momento
da verdade, o momento em que Jacó teria de deixar de ser Jacó e passar a ser
Israel.
Abraão por sua vez, não teve porque lutar fisicamente com Shadai,
seu embate com o Santo foi completamente ético, se baseou em juízo de valor,
uma briga limitada pelo comportamento de seu sobrinho e das pessoas com quem
ele vivia.
As posturas do avô e do neto, diante do Santo, mostram a maturidade de
cada um:
Abraão pergunta: “Destruirás o justo com o ímpio?” 5;
Jacó afirma: “não te deixarei ir se não me
abençoares” 6;
Abraão em sua reverência faz Shadai refletir;
Jacó com seu determinismo agarra-se ao
Santo;
Abraão conversa com o Eterno;
Jacó ameaça Peniel.
Ao final dos embates, ambos são diferentemente abençoados:
Abraão voltou tranquilamente ao seu
lugar 7 depois que garantiu a possibilidade de livramento do
sobrinho;
Jacó tombou atingido pela bênção desconjuntante de Peniel 8.
“Quando Jacob briga com seus demônios e os traz para uma luta interna,
sem ter que demonizar seu irmão, qualquer um ou qualquer situação; quando
assume responsabilidade integral sobre a realidade à sua volta, não culpando ninguém;
quando dá atenção a seus sensos e reverências acima de seus medos e
inseguranças; então, seu nome é Israel.” 9
Em algumas famílias, as tragédias resultam em reuniões à volta da mesa,
com o objetivo de esclarecer questões, resolver atritos, colocar tudo “em
pratos limpos”. Nesses momentos, ao invés de “comerem”, “vomitam”
as diferenças “uns” contra os “outros”; querem “ouvir” e
dizer o que “pensam” uns dos outros. Essa “lavação de roupa”
costuma ocorrer com mais frequência nas Festas de Fim de Ano, com a
intenção de “passarem o Natal” ou “entrarem o Ano”, livres das
mágoas e dos ressentimentos. Tolice.
Esse ajuste de contas nunca ocorreu entre Jacó e Esaú. O texto mostra que
não houve um encontro para colocar tudo “em pratos limpos”. Eles não se
reencontraram para ressuscitar o passado e esfregá-lo, “um” na cara do “outro”,
e depois de “resolverem tudo”, enterrá-lo de novo. Isso não aconteceu.
As diferenças entre Jacó e seu irmão foram resolvidas em Jacó de forma interna,
numa luta travada contra ele mesmo. Naquela noite, na noite do ajuste de
contas, ele era Esaú, ele era Peniel, ele tornou-se Israel. Lutar contra homens
e contra Deus e prevalecer é vencer a si mesmo, nos momentos em que queremos
ressuscitar os acontecimentos mortos, ao invés de abençoar os acontecimentos
vivos.
Nunca acreditei que nos “ajustes de contas” entre parentes, “vomitar”
no outro fosse a melhor coisa a fazer. Acredito que para preservar a unidade
familiar, temos de engolir. Engolir as raivas, engolir as diferenças,
engolir as decepções e os desafetos. Engolir é o que nos santifica e nos
abençoa como família.
Não lembro ter lido o momento em que Jacó “deu seu dízimo”,
cumprindo o voto com Deus. Mas entendo que o voto foi cumprido, ou seja, o
dízimo foi retribuído ao Senhor. Não acho que Jacó tenha esperado chegar ao fim
da caminhada para fazer isso, creio que foi imediatamente retribuído a Deus a
partir do momento do voto. As tragédias na família de Jacó fizeram com que ele
retribuísse ao Senhor imediatamente.
***
Notas – Israel. Aquele que luta com Deus e
vence a si mesmo.
1. Nilton Bonder. Fronteiras da Inteligência; Um modelo de inteligência: Do
exorcismo ao endorcismo; pgs. 80 e 81.
2. Gênesis 28:10 a 22 - BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
3. Gênesis 28:20 a 22 – BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
4. Nilton Bonder, Fronteiras da Inteligência, Um modelo de inteligência, do
exorcismo ao endorcismo. p. 80.
5. Gênesis 18:23 - BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
6. Gênesis 32:26 - BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
7. Gênesis 18:33.
8. Gênesis 32:31.
9. Nilton Bonder, Fronteiras da Inteligência, Um modelo de inteligência, Do
exorcismo ao endorcismo. pgs. 78 a 82.
Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC
- Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia
Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia
Edição Pastoral
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