"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

Israel. Aquele que luta com Deus
e vence a si mesmo.


“Jacob compreende o mundo tendo que colocar as coisas para fora. Ele exorciza, expulsa para fora, para poder compreender e dominar. Israel, ao contrário, traz para dentro. Enfrentar Deus e homens e prevalecer significa integrar ou tornar inteiro internamente. Israel não mais verá seu irmão como inimigo ou limitador. Não será um “outro” que terá responsabilidade por causas ou consequências. Um Israel que tem sentimentos em relação ao outro, sentimentos muitas vezes de ódio, mas que só briga consigo mesmo.” 1
Rabino Nilton Bonder


A segunda vez que encontramos a ação de “dar o dízimo” é no texto de Gênesis 28 2, que relata o ocorrido com Jacó, quando depois de um sono atribulado, assombrado pela presença Divina, acordou amedrontado dizendo estar na “Casa de Elohim”. Diante da terrível presença de Deus, Jacó disse que se tudo desse certo na saída da casa de seu pai, e se durante a caminhada, distante de sua família primordial, tudo lhe fosse bem, e sua volta fosse vitoriosa e pacífica, ele daria ao Eterno todo o seu dízimo. Mais uma vez encontramos o dízimo ligado a uma tragédia familiar.

“E Jacó fez um voto, dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta viagem que faço, e me der pão para comer, e vestes para vestir; e eu em paz tornar à casa de meu pai, o SENHOR me será por Deus; e esta pedra que tenho posto por coluna será casa de Deus; e de tudo quanto me deres, certamente te darei o dízimo.” 3

A história de Jacó é conhecida pela maioria dos religiosos. Em síntese, sua vida até aquele momento era uma tragédia. Embora gêmeo de Esaú, Jacó não era o primogênito, ele nascera depois de seu irmão, agarrando-lhe o calcanhar. Por isso não possuía o direito a bênção dos primogênitos. Porém, esperto negociador, comprou do irmão faminto, por um prato de comida, a possibilidade de ser abençoado. Depois, com sua mãe Rebeca, a amada de Isaque, tentou burlar os sentidos do velho pai que se deixou enganar pela farsa grosseira. Antes de morrer Isaque desejava abençoar seu filho preferido, Esaú, mas acabou abençoando o filho preferido de Rebeca, Jacó. Após ser abençoado por seu pai, aquele homem precisou fugir da ira de seu irmão, que desejava matá-lo. Tragédias, tragédias, tragédias. Todas em uma só família. A família de Abraão.

Na fuga, o neto do patriarca encontrou-se com o Deus de seu avô, que ignorando os malfeitos de Jacó, se revelou a ele e o abençoou, seguindo a mesma diretriz das bênçãos dadas por Isaque, o filho do útero de Sára.

É interessante perceber, que Jacó propôs ao Senhor, retribuir aos outros, o que recebesse do Altíssimo. Um dízimo originado por uma tragédia. Proteger na empreitada; proporcionar alimento – pão e vinho –; manter sua dignidade com roupas não gastas; e um retorno pacífico “a casa paterna”. Essa última, por meio do restabelecimento da harmonia e do vínculo familiar entre ele e seu irmão Esaú e com seu pai Isaque. O final do voto é revelador: “... então tu, Adonai, serás o meu Deus.”.

Isso implica dizer que Jacó iria retribuir em igual medida tudo que recebesse de Deus. Ter Deus era ser Deus para quem precisasse. Essa foi a máxima do dízimo de Jacó. Aparentemente diferente do dízimo de Abraão, porém essencialmente igual. Em outras palavras, o que Abraão fez, foi agradecer a Deus com sua parte nos despojos, por Ele ter mantido sua família segura. Jacó por sua vez, disse que iria retribuir de igual maneira tudo que recebesse do Senhor. Retribuir não é pagar, retribuir é dar aos necessitados, como gratidão, por tudo que recebemos do Altíssimo.

Realmente não é difícil perceber a prática de retribuir com o dízimo, a Misericórdia de Deus a todos que necessitam de misericórdia. Receber a ajuda de Deus em nossa vida significa oferecer Deus a quem precisa de ajuda. Esse “oferecer Deus”, estava distribuído nas várias solicitações que Jacó fez ao Senhor de toda a terra.

Se somos protegidos por Deus em nossa caminhada pela vida, precisamos proteger os outros na caminhada de suas vidas; se recebemos alimento de Deus, precisamos alimentar nosso próximo; se recebemos de Deus vestimenta, dignidade e honra, precisamos agir de igual maneira para com aqueles que nos pedem; se a face de Deus está voltada para nós e esse olhar atento do Criador nos abençoa com paz, somos obrigados a fazer o mesmo: olhar com bênção aos que iguais a nós, precisam de paz. Fazendo assim nos tornamos filhos do Pai Celestial. O dízimo, é sempre fruto de uma tragédia familiar, e ainda assim é resultado do reconhecimento ao cuidado de Deus com nossa família, retribuímos a bênção recebida dando o dízimo a quem precisa.

Depois que Jacó enfrentou suas tragédias familiares com suas quatro mulheres e seu sogro, ele teve de enfrentar um último inimigo, uma última batalha no processo de iniciação para se tornar um patriarca igual a seu avô. Ele teve de enfrentar a si mesmo. O texto da batalha com o anjo do Senhor, tem um forte componente onírico, onde Jacó teve a “perna desconjuntada, mas ao final quem manquejava era Peniel”. 4 Ao dar seu dízimo, Jacó teve de vencer a si mesmo, deixando de ser Jacó e se transformando em Israel.

O episódio bíblico, que narra à luta física de Jacó e o Anjo do Senhor, carrega em si uma grande similaridade com a luta ética de Abraão com Shadai. Jacó enfrenta seus medos fisicamente, Abraão enfrenta os seus eticamente. O enfrentamento que Jacó tem com seu Deus provém do temor que ele possuía de encontrar com o irmão que lhe jurara morte. Para Jacó deter a morte tinha a ver com lutar contra ela, para impedir que ela o matasse. A morte que Jacó temia vinha de seu irmão, e podemos até entender que ela era o próprio irmão.

No confronto físico de Jacó com Peniel, o Divino também representava a morte, que representava Esaú. Por isso lutar contra Deus e contra homens. Em uma observação cuidadosa, Jacó lutava contra si mesmo pois Esaú era seu irmão gêmeo. Ele também lutava contra o Deus que jurara servir. Aquele era o momento da verdade, o momento em que Jacó teria de deixar de ser Jacó e passar a ser Israel.

Abraão por sua vez, não teve porque lutar fisicamente com Shadai, seu embate com o Santo foi completamente ético, se baseou em juízo de valor, uma briga limitada pelo comportamento de seu sobrinho e das pessoas com quem ele vivia.

As posturas do avô e do neto, diante do Santo, mostram a maturidade de cada um:

Abraão pergunta: “Destruirás o justo com o ímpio?” 5;
Jacó afirma: “não te deixarei ir se não me abençoares” 6;
Abraão em sua reverência faz Shadai refletir;
Jacó com seu determinismo agarra-se ao Santo;
Abraão conversa com o Eterno;
Jacó ameaça Peniel.

Ao final dos embates, ambos são diferentemente abençoados:

Abraão voltou tranquilamente ao seu lugar 7 depois que garantiu a possibilidade de livramento do sobrinho;
Jacó tombou atingido pela bênção desconjuntante de Peniel 8.

“Quando Jacob briga com seus demônios e os traz para uma luta interna, sem ter que demonizar seu irmão, qualquer um ou qualquer situação; quando assume responsabilidade integral sobre a realidade à sua volta, não culpando ninguém; quando dá atenção a seus sensos e reverências acima de seus medos e inseguranças; então, seu nome é Israel.” 9

Em algumas famílias, as tragédias resultam em reuniões à volta da mesa, com o objetivo de esclarecer questões, resolver atritos, colocar tudo “em pratos limpos”. Nesses momentos, ao invés de “comerem”, “vomitam” as diferenças “uns” contra os “outros”; querem “ouvir” e dizer o que “pensam” uns dos outros. Essa “lavação de roupa” costuma ocorrer com mais frequência nas Festas de Fim de Ano, com a intenção de “passarem o Natal” ou “entrarem o Ano”, livres das mágoas e dos ressentimentos. Tolice.

Esse ajuste de contas nunca ocorreu entre Jacó e Esaú. O texto mostra que não houve um encontro para colocar tudo “em pratos limpos”. Eles não se reencontraram para ressuscitar o passado e esfregá-lo, “um” na cara do “outro”, e depois de “resolverem tudo”, enterrá-lo de novo. Isso não aconteceu. As diferenças entre Jacó e seu irmão foram resolvidas em Jacó de forma interna, numa luta travada contra ele mesmo. Naquela noite, na noite do ajuste de contas, ele era Esaú, ele era Peniel, ele tornou-se Israel. Lutar contra homens e contra Deus e prevalecer é vencer a si mesmo, nos momentos em que queremos ressuscitar os acontecimentos mortos, ao invés de abençoar os acontecimentos vivos.

Nunca acreditei que nos “ajustes de contas” entre parentes, “vomitar” no outro fosse a melhor coisa a fazer. Acredito que para preservar a unidade familiar, temos de engolir. Engolir as raivas, engolir as diferenças, engolir as decepções e os desafetos. Engolir é o que nos santifica e nos abençoa como família.

Não lembro ter lido o momento em que Jacó “deu seu dízimo”, cumprindo o voto com Deus. Mas entendo que o voto foi cumprido, ou seja, o dízimo foi retribuído ao Senhor. Não acho que Jacó tenha esperado chegar ao fim da caminhada para fazer isso, creio que foi imediatamente retribuído a Deus a partir do momento do voto. As tragédias na família de Jacó fizeram com que ele retribuísse ao Senhor imediatamente.



***
Notas – Israel. Aquele que luta com Deus e vence a si mesmo.
1. Nilton Bonder. Fronteiras da Inteligência; Um modelo de inteligência: Do exorcismo ao endorcismo; pgs. 80 e 81.
2. Gênesis 28:10 a 22 - BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
3. Gênesis 28:20 a 22 – BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
4. Nilton Bonder, Fronteiras da Inteligência, Um modelo de inteligência, do exorcismo ao endorcismo. p. 80.
5. Gênesis 18:23 - BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
6. Gênesis 32:26 - BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
7. Gênesis 18:33.
8. Gênesis 32:31.
9. Nilton Bonder, Fronteiras da Inteligência, Um modelo de inteligência, Do exorcismo ao endorcismo. pgs. 78 a 82.

Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC - Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia Edição Pastoral

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