“Trazei todos os dízimos para a casa do tesouro para que haja mantimento
na minha casa.” 1
Malaquias, o profeta
A PARTIR DO MOMENTO que o conjunto de contribuições para o sustento dos sacerdotes, levitas,
suas famílias, além das famílias necessitadas foi estabelecido por Deus, ficou
clara Sua intenção: estimular a união visceral da família ofertante e da
família que recebia a oferta. Duas famílias se misturando numa só. Comerem
juntos, engolindo as diferenças era dizimar; não no sentido de “dar dez por
cento” de tudo que possuíam naquele momento, de forma ritualizada, mas sim,
no sentido de exterminar, acabar, dizimar com tudo que fosse nocivo à
perpetuidade da família. Deus estabeleceu regras de retribuição a Ele, com atos
de oferecimento, dádiva e contribuição para famílias necessitadas.
Simplificando: “Os dízimos” eram o ato de retribuir a alguém necessitado a
bênção que a família ofertante recebera do Eterno. Dízimo é ato plural e não
singular.
Honestamente, ainda não consegui encontrar nenhuma referência bíblica sobre
o dízimo, que não estivesse ligada ao sustento de alguém necessitado, fosse uma
pessoa realizando o trabalho do Eterno – como no caso dos sacerdotes e levitas;
fosse uma família – como no caso das famílias destes, além dos estrangeiros,
das viúvas e dos órfãos. Dízimo tem a ver com família; família tem a ver com
bênção de Deus; bênção de Deus tem a ver com livramento e consolo na hora da
tragédia. Esses livramentos e consolos em horas trágicas devem gerar no coração
agradecido da família, uma retribuição física conhecida como dízimo.
Essa é uma melodia tipicamente judaica, composta por um acorde formado de
quatro notas, a tetralética. Essa melodia, esse proceder, esse
entendimento, essa prática só tem a ver com os filhos de Abraão. A ordem de dar
o dízimo foi para eles; os castigos por não ofertá-lo da mesma forma; as
bênçãos oriundas ao cumprimento dessa ordem beneficiam às famílias que
retribuem e às famílias que recebem essa retribuição. Judeus e Israelitas são
os descendentes tradicionais de Abraão e o dízimo foi instituído por Deus para
que os irmãos – os filhos de Abraão – cuidassem uns dos outros.
Porém, na conversa entre o Eterno e seu servo, há uma promessa
generalizante: “... em ti serão benditas todas as famílias da terra.”
2 Essa promessa me é reveladora e assustadora ao mesmo tempo.
Reveladora porque entendo que ela põe “todas as famílias da terra”
em pé de igualdade com a família de Abraão; isso porque é nele – Abraão –, que “todas
as famílias” são abençoadas. Entendo que esse “abençoar” tem
acontecido por termos todos, no mundo todo, recebido os benefícios das
descobertas brilhantes das mentes judaicas no tocante à saúde física e mental,
à ciência, à política, à espiritualidade, etc., a lista dos filhos de Abraão
que abençoaram – e abençoam – o mundo com descobertas é infindável. Mas também
aceito e acredito que “as bênçãos de Abraão” são literais para todas as
famílias da terra.
Assustadora, porque percebo que ela – a promessa – atribui a todas as
famílias que não são hereditariamente vindas de Abraão, a mesma obrigação em
relação ao cuidado mútuo. Se somos abençoados temos de abençoar, não importando
se a bênção recebida é espiritual ou material. Recebemos, temos de retribuir.
Essa retribuição é dízimo.
Jesus é peça fundamental na minha religiosidade, ele é o meu Messias e
ponto final. Eu não poderia continuar este texto sobre o dízimo sem apresentar
o que encontro no Novo Testamento, a Bíblia gentílica. Pedro alerta para a
importância da Igreja; Tiago denuncia a contaminação religiosa sofrida pela
Igreja; Paulo mostra as graves consequências sociais da falta de misericórdia
da Igreja, João lembra que se nos afastarmos do objetivo de Deus – que é
cuidarmos uns dos outros – devemos urgentemente retornar ao cuidado. Os
evangelhos mostram os ensinos de Jesus apreendido por quatro pessoas
diferentes, mas creio que seria exaustivo e até improdutivo refletir sobre o
dízimo em todos os livros desse tratado de salvação. Prefiro despertar em você
a necessária curiosidade para buscar sua própria verdade.
Jesus fez de um ajuntamento de pessoas que o seguiam e as quais ele
ensinava, um grupo distinto dos demais ajuntamentos de sua época, e a esse
ajuntamento, que contava com a presença de judeus e gentios, ele deu o nome de
Igreja 5. No hebraico, o termo igreja é “qehilaty” e quer
dizer “congregação”; sua raiz é “Kahal”, que é “ajuntar”.
Jesus parece profetizar que seus seguidores seriam somente um ajuntamento de
pessoas famintas e sedentas de Justiça; fome e sede tão grandes que só poderiam
ser saciadas pela justiça do Reino do Céu. Porém, comer e beber “sozinho”
da Justiça Divina não satisfaz, é necessário juntar outros famintos e sedentos
da mesma Justiça e dividir o pão e o vinho com eles.
É a esse ajuntamento que Jesus responsabiliza a prática da Justiça
Divina. Essa justiça se manifesta no cuidado com o meu “outro”, com o
meu próximo, com o meu irmão, com o meu semelhante, com os necessitados de mim.
Igreja é o ajuntamento de pessoas gentis, de pessoas que fazem da gentileza sua
principal característica; um ajuntamento de pessoas que se preocupam com uma
existência digna para todos. Igreja é ajuntamento de Justos, de pessoas
misericordiosas.
Devemos a todo custo, cuidar de entender as diferenças fundamentais entre
Igreja e religião. Hoje, essas diferenças já não são aparentes, existem, mas
não aparecem. Elas se misturaram, se mesclaram se confundiram. Hoje, a grande
maioria das pessoas prefere o fast food global, afinal, comprar feito é
melhor que fazer. No campo da espiritualidade, quase não existe o novo, o
revelado, o diferente. A sacralidade de escrever sobre questões espirituais
está se perdendo porque o contato com Eterno também está se perdendo. As
pessoas estão se tornando mais religião e menos igreja.
Uma diferença fundamental entre essas duas forças é que a religião é
grupal, geral e totalitária. As revelações são para os outros; as orações são
feitas para os outros ouvirem e se rejubilarem em honra ao orador; as
encenações artísticas acontecem para serem aplaudidas, fazendo com que os artistas
tomem o lugar do Santo. A igreja, por sua vez, é solitária, é secreta, é íntima
e intimista. As revelações são individuais, as preces são feitas em secreto
– para que o Pai que ouve em secreto, em secreto as atenda 6 –, e
não há encenação, há celebração de pão e vinho sendo divididos com os
necessitados. Mas hoje todos preferem os pacotes de uma “espiritualidade”
que já vem pronta e é em grande parte falsa. Falsa porque não foi construída
pelo indivíduo, pertence a outras pessoas que nem são conhecidas por ele. É uma
espiritualidade falsa porque não é verdadeira, é assertiva, é escravizante.
Essa espiritualidade de massa faz da religião um monte de gente com a
mesma cara, com as mesmas falas, com as mesmas vestes, mas sem identidade. São
pessoas sem santidade, porque a santidade está na diferença, na separação, na
individualidade.
A Igreja que Jesus idealizou parece estar desaparecendo rapidamente,
dando lugar a uma besta chamada religião, a uma legião demoníaca que atende
pelo nome de “doutrinas” – legião porque são muitas. A igreja
proveniente dessas doutrinas só tem o nome, ela não ajunta, ela espalha.
Aqui não quero tratar de religião nem de doutrinas, quero apresentar a minha
verdade sobre o dízimo. Cabe a cada um que se sentiu incomodado com estas
afirmações, desabraçar seu comodismo, sair debaixo dos lençóis do conformismo,
abandonar sua preguiça e buscar a verdade. Perdoe-me a franqueza.
Tão sagrada quanto o dízimo, a igreja atual cerca-se de todas as
certezas possíveis para manter-se como a verdadeira “noiva”, aquela que
faz a diferença no mundo. Tem feito, mas não como deveria fazer, não como fora
idealizada pelo Messias Jesus. Por ser a prática de dar o dízimo, ato sagrado
nos dias de hoje para a maioria dos religiosos denominados cristãos, tocar no
assunto de forma tão clara e simples, sem religiosidade ou doutrinação, com
certeza causa incômodo e até inquietação. Mas se você chegou até aqui, não
custa nada seguir adiante e perceber como a Bíblia gentílica – o Novo
Testamento – trata o tema.
Trato o Novo Testamento como a Bíblia gentílica, porque para a grande
maioria dos Judeus – menos os denominados messiânicos –, a Bíblia é o Tanak,
a coleção dos três tomos sagrados: Torah, Nevi’im e K’tuvim.
Ensino ou Lei, Profetas e Escrituras. Além desse fato, algumas linhas
protestantes, com base, nos ensinos de Lutero, quase que relegam o Tanak,
por professarem que a Graça Salvadora e o Perdão Divino, se manifestam a partir
de Jesus. Devido a esses e a outros fatos que não cabem discutir no corpo deste
texto, é que considero o Novo Testamento a Bíblia gentílica.
Jesus em seu mais famoso discurso, o “Sermão do Monte”, discorreu
por assuntos interpretados por grande parte dos religiosos como sendo questões
meramente espirituais. Nele, Jesus fala de pobres, injustiçados, famintos de
justiça, pessoas que seriam injuriadas e perseguidas por concordarem que ele
era o Messias prometido no Tanak. Jesus nunca falou de eterelidades
7, ele falava de materialidades, de fatos e situações concretas, mas
falava em parábolas, para que só fossem entendidas por aqueles escolhidos para
compreender a salvação; aos demais não lhes era dado entender – “Para que,
vendo, vejam, e não percebam; e, ouvindo, ouçam, e não entendam; para que não
se convertam, e lhes sejam perdoados os pecados” 8– era assim
que Jesus falava, era assim que ele ensinava. É assim que é até hoje.
***
Notas – Muitos dízimos, uma só intenção.
1. Malaquias 3:10 – BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
2. Gênesis 12:3 – BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
3. Nilton Bonder, O Judaísmo para o século XXI, Tolerância e o Outro, pgs.
23 a 26.
4. João 4:22.
5. Mateus 16:18.
6. Mateus 6:1 a 19.
7. Neologismo do autor. Qualidade de etéreo: relativo ao, ou da natureza do
éter; sublime; celestial.
8. Marcos 4.12.
Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC - Bíblia
Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia Nova Versão
Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia Edição
Pastoral.
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