"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

Todas as famílias, todos os dízimos.


DEVIDO AO EMARANHADO de conceitos religiosos e doutrinários que foram criados a cerca do dízimo, no lado de cá da orquestra, a confusão foi inevitável. O desconhecimento de como se compunha o “dízimo de Moisés”, foi matéria prima para a criação dos conceitos nada verdadeiros sobre essa prática no lado ocidental da religiosidade. Na tentativa de iluminar minimamente a questão, apresento uma pequena explicação de cada uma das contribuições, ou “dízimos”, que foram determinados por Deus. Sempre lembrando que na prática de retribuir “esses dízimos”, a participação da família era primordial.

Bikurim.
Cuidando do Sacerdote.
“E o Eterno falou a Aarão: ‘E Eu, eis que te dei a guarda das Minhas ofertas; todas as santidades dos filhos de Israel dei-as a ti por grandeza, e a teus filhos, por estatuto perpétuo. Isto terás da santidade das santidades após serem oferecidas no fogo: todas as suas ofertas de sacrifício de oblações, de pecado, de delito e de roubo que Me restituem – santidade de santidade será para ti e para teus filhos. Na santidade das santidades comerás; todo homem comerá delas – santidade será para ti.’” 1

A importância do ofício sacerdotal precisava ser reconhecida pelo povo, e por isso Deus estabeleceu que a primeira contribuição que compunha o dízimo deveria ser dada ao sacerdote. O sacerdote era a pessoa que levava as questões do povo ao Eterno. Fossem pedidos de perdão, na figura de sacrifícios; fossem na mera intercessão. Eles também cuidavam da vida espiritual do povo e sua importância no equilíbrio social precisava ser lembrada a todos por meio da retribuição. Tal era a importância do procedimento de ofertar para sustentar o sacerdote, que foi tratado como estatuto perpétuo, ou seja, enquanto existisse um sacerdote ele deveria ser cuidado e sustentado por todos que de alguma forma fossem beneficiados por seu ofício.

Terumá Guedolá.
Cuidando da família do sacerdote
“E esta é para ti a oferta separada das suas dádivas: Todas as ofertas movimentadas dos filhos de Israel, dei-as para ti, para teus filhos e para tuas filhas contigo, por estatuto perpétuo; todo aquele que estiver puro na tua casa as comerá. Todo o melhor do azeite e todo o melhor do mosto de uva e do grão, as suas primeiras ofertas, que derem ao Eterno, dei-as a ti. As primícias de tudo o que houver na sua terra, que trouxerem ao Eterno, serão para ti; todo aquele que estiver puro na tua casa as comerá. Tudo que for consagrado a Deus, em Israel, será para ti. Todo o que abrir a matriz de todo ser vivente, que oferecerem ao Eterno, do homem e do animal, será para ti; porém, resgatarás os primogênitos do homem e resgatarás os primogênitos do animal impuro. E os que deles hão de ser resgatados, os resgatarás na idade de um mês, segundo a tua avaliação, por cinco siclos de prata, seguindo o siclo da santidade, que é de 20 guerás. Mas o primogênito do boi, ou o primogênito do carneiro ou o primogênito do bode, não remirás; eles são santidades e o seu sangue espalharás sobre o altar e sua gordura farás queimar, em oferta queimada para ser aceita com agrado pelo Eterno. E a carne deles será para ti como o peito da oferta movimentada e como a espádua direita – será para ti. Todas as ofertas separadas, das santidades que separarem os filhos de Israel para o Eterno, dei-as a ti, a teus filhos e a tuas filhas contigo, por estatuto perpétuo; ela é uma aliança perpétua como a do sal diante do Eterno, para ti e para tua descendência contigo.” 2

Seria tolice achar que Deus não teria nenhuma preocupação com a família daquele que lhe servia como sacerdote. Depois de cuidar do oficiante, o povo deveria também cuidar da família dele, afinal de contas, eles não podiam trabalhar na terra para gerar seu próprio sustento.

“E o Eterno disse a Aarão: ‘De suas terras não herdarás, e não haverá para ti parte entre eles; Eu sou a tua parte e a tua herança entre os filhos de Israel.’” 3

Se Deus era a herança do sacerdote, que grande herança era. Todo o povo, todos os irmãos – filhos do mesmo pai Abraão – deveriam promover o sustento da família daquele homem que tinha o árduo trabalho de equilibrar a balança das relações Deus-homem/homem-Deus. Nada mais justo.

Maasser Richon – primeiro dízimo.
A retribuição aos levitas por seus serviços.
“E aos filhos de Levi, eis que tenho dado todos os dízimos em Israel por herança, em troca do serviço que eles prestam na tenda da reunião. E não se aproximarão mais os filhos de Israel à tenda da reunião, para que não levem sobre si pecado e morram. E os levitas servirão no serviço da tenda da reunião, e eles levarão sobre si a sua iniquidade – estatuto perpétuo pelas vossas gerações; e no meio dos filhos de Israel não terão herança. Porque os dízimos que os filhos de Israel separarem em oferta ao Eterno dei aos levitas por herança; portanto Eu lhes disse: No meio dos filhos de Israel não terão herança.” 4

Todos os textos sagrados do Antigo Testamento, que mencionam os levitas, o fazem definindo-os como os serviçais dos lugares de adoração. Fossem no Tabernáculo – a Tenda Sagrada – e posteriormente nos Templos – o construído por Salomão, depois o construído por Herodes. Eles eram os zeladores, aqueles que cuidavam da limpeza, da organização, da liturgia, dos instrumentos musicais e os executavam quando era necessário. No deserto, somente eles podiam carregar o Tabernáculo e a Arca da Aliança. A Torah diz que por esse trabalho eles também deveriam receber a retribuição do povo, sendo providos de tudo que precisassem para uma vida digna.

Maasser Sheni ou Segundo Dízimo.
Família e “assassino” comem juntos diante de Deus.
“Certamente separarás o dízimo de todo o produto das tuas sementes, que o campo produzir de ano a ano. E o comerás diante do Eterno, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar Seu Nome; o dízimo de teu grão, teu mosto e teu azeite, e os primogênitos do teu gado e do teu rebanho, para que aprendas a temer o Eterno, teu Deus, em todo o tempo. E se o caminho te for longo, de modo que não o possas levar, por estar longe de ti o lugar que escolher o Eterno, teu Deus, para ali pôr o Seu Nome, pois te abençoará o Eterno, teu Deus, para teres produção abundante; então o trocarás por dinheiro, e atarás o dinheiro em tua mão e irás ao lugar que o Eterno, teu Deus, escolher. E darás este dinheiro por tudo o que desejar a tua alma – por gado, ou por rebanho, ou por vinho, ou por vinho velho ou por tudo o que te pedir a tua alma; e comerás ali diante do Eterno, teu Deus, e te alegrarás, tu e a gente de tua casa. E ao levita que está em tuas cidades, não deixarás de dar-lhe (o teu primeiro dízimo), pois não tem parte nem herança contigo.”5

Como mostra o texto Sagrado, a prática do “segundo dízimo” era anual. No mês em que a produção agrícola estivesse pronta, todas as décimas partes de cada cultura, fossem hortaliças, frutas, legumes, cereais, e tudo mais que fosse produzido no campo de plantação da família, deveria ser separado para que fosse comido por ela em uma cidade e lugar determinados por Deus. O “lugar onde estava Seu Nome”, normalmente era Jerusalém, pois era lá que estava o Grande Templo. O texto também mostra que um levita faria parte da celebração familiar. Mas porquê aquele levita deveria estar presente em uma celebração que pertencia somente aos membros da família? A resposta é simples: porque ele era a figura do assassino do primogênito da família, ele representava o assassino que deveria ser eternamente perdoado e transformado em primogênito, ele deveria ser incorporado ao grupo familiar. Essa é a pedagogia Divina do resgate das relações familiares, onde a figura do assassino primordial toma o lugar do primogênito primordial.

O ato de comermos juntos, em família, faz com que as rivalidades, as animosidades, as inimizades, as mágoas, as indiferenças, as desavenças, sejam endorcisadas, trazidas pra dentro, mastigadas e engolidas. Dentro de nós, essas diferenças deixam de ser externas e passam a ser internas, deixam de ser “nossas” e passam a ser “minhas”. No ato de comermos em família, cada um de nós deixa de ser Jacó e Esaú para se transformar em um só Israel, nos tornando os únicos responsáveis pela transformação de tragédias em bênçãos. Esse ato de restauração das relações externas com base na cura das relações internas está na pessoa e na presença do “levita”, que é antagonicamente sagrada. O oficiante do Santo, que cura as relações familiares era a figura daquele que “feriu” quando “matou” o venerado “primogênito”. A figura do “levita” nas nossas reuniões familiares não somente nos abençoa, mas nos santifica, retirando de nós, aquele – primogênito – que nos faz idólatras. Esse oficiante sagrado nos chega como um necessitado, precisando de nossa misericórdia, pedindo nosso perdão. Um estranho, um necessitado, um santo, um assassino. Deus estimulou – e ainda estimula – seus filhos a serem literalmente abençoados pela tragédia. Receber de Deus é retribuir Deus.

Maasser Ani – o Dízimo do pobre.
Uma noite para sermos todos iguais.
“Ao fim de três anos tirarás todos os dízimos de teu produto, naquele ano, e os depositarás dentro das tuas cidades. E virá o levita, que não tem parte nem herança contigo (e tomará o primeiro dízimo), e o peregrino, o órfão e a viúva, que estão nas tuas cidades (tomarão o dízimo do pobre) e comerão e se fartarão, para que o Eterno, teu Deus, te abençoe em todas as obras que as tuas mãos fizerem.” 6

Mais uma vez, a família era reunida para participar de um banquete. Eles iriam comemorar a colheita abundante, oferecendo “uns” aos “outros” o melhor de si mesmos. Ao final de três anos de trabalho, todos se reuniam em volta da mesa, trazendo tudo que tinham. De amores a rancores, de amizades a inimizades, tudo deveria ser oferecido nesse altar – a comunhão – e queimado no fogo da reconciliação, com suas chamas quentes de amor e tolerância.

Não posso afirmar que o levita que participava desse segundo momento fraterno, era o mesmo que participara do momento anterior; mas isso é possível, já que ele havia se tornado o “substituto” do “filho assassinado por ele mesmo”. Além desse “assassino-filho”, outras figuras participavam desse banquete: o estrangeiro, o órfão e a viúva. Os “sem família”. Deus impôs a prática abraâmica de: “o que é meu é teu, e o que é teu é teu”. A pedagogia Divina era a mesma, comer as indiferenças e transformá-las em igualdades.

Trazer os “meus outros” para dentro das “minhas portas”, sempre é extremamente desconfortante; mas a pedagogia do Eterno é a mesma, comer as diferenças, elimina-las com a boca, tragá-las, engoli-las, processá-las, transformá-las e expulsá-las de nós, como elas realmente são: fezes.

Jesus disse que o que contamina as relações familiares não é o que comemos, é o que falamos. Quando comemos nossas antipatias, sobram empatias e simpatias; quando comemos as indiferenças e as diferenças, sobram igualdades, e similaridades. Jesus chegou a ser grosseiro quando afirmou no livro do levita Mateus, que essa “comida” tem que ser comida por todos para que tudo que nos separa como família vire bosta.

Mas Jesus não termina sua afirmação sagrada falando em fezes, ele diz que depois que tudo o que estiver no “estômago” for evacuado, o coração deve ser cheio das vitaminas que fortalecem os relacionamentos: “... a boca fala o que sobeja do coração” 7. Comer nossas raivas, nossos ódios – e depois “evacuá-los” – faz com que tenhamos espaço no coração para as palavras e gestos de amor. Precisamos viver nossas tragédias para podermos viver as nossas bênçãos, e na prática de retribuir o dízimo, Deus nunca deixou de observar a máxima que produz bênção: toda família é uma tragédia em potencial, e toda tragédia carrega consigo uma bênção proporcional, toda bênção é fonte de um amor incondicional. O reconhecimento dessa relação divina entre família, tragédia e bênção resulta no dízimo. Nas práticas que envolvem alimento, o dízimo é devorado junto com a tragédia para se transformar na bênção do “amarmos uns aos outros”.



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Notas – Todas as famílias, todos os dízimos.
1. Números 18:8 a 10 - BH, Editora Sêfer, 2006.
2. Números 18:11 a 19 - BH, Editora Sêfer, 2006.
3. Números 18:20 - BH, Editora Sêfer, 2006.
4. Números 18:21 a 24 - BH, Editora Sêfer, 2006.
5. Deuteronômio 14:22 a 27 - BH, Editora Sêfer, 2006.
6. Deuteronômio 14:28 a 29 - BH, Editora Sêfer, 2006.
7. Mateus 12:34 – BJC, Editora vida, 2010.

Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC - Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia Edição Pastoral

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