DEVIDO AO EMARANHADO de conceitos religiosos e doutrinários que foram
criados a cerca do dízimo, no lado de cá da orquestra, a confusão foi
inevitável. O desconhecimento de como se compunha o “dízimo de Moisés”,
foi matéria prima para a criação dos conceitos nada verdadeiros sobre essa
prática no lado ocidental da religiosidade. Na tentativa de iluminar minimamente
a questão, apresento uma pequena explicação de cada uma das contribuições, ou “dízimos”,
que foram determinados por Deus. Sempre lembrando que na prática de retribuir “esses
dízimos”, a participação da família era primordial.
Bikurim.
Cuidando do Sacerdote.
“E o Eterno falou a Aarão: ‘E Eu, eis que te dei a guarda das Minhas
ofertas; todas as santidades dos filhos de Israel dei-as a ti por grandeza, e a
teus filhos, por estatuto perpétuo. Isto terás da santidade das santidades após
serem oferecidas no fogo: todas as suas ofertas de sacrifício de oblações, de
pecado, de delito e de roubo que Me restituem – santidade de santidade será
para ti e para teus filhos. Na santidade das santidades comerás; todo homem
comerá delas – santidade será para ti.’” 1
A importância do ofício sacerdotal precisava ser reconhecida pelo povo, e
por isso Deus estabeleceu que a primeira contribuição que compunha o dízimo
deveria ser dada ao sacerdote. O sacerdote era a pessoa que levava as questões
do povo ao Eterno. Fossem pedidos de perdão, na figura de sacrifícios; fossem
na mera intercessão. Eles também cuidavam da vida espiritual do povo e sua
importância no equilíbrio social precisava ser lembrada a todos por meio da
retribuição. Tal era a importância do procedimento de ofertar para sustentar o
sacerdote, que foi tratado como estatuto perpétuo, ou seja, enquanto existisse
um sacerdote ele deveria ser cuidado e sustentado por todos que de alguma forma
fossem beneficiados por seu ofício.
Terumá Guedolá.
Cuidando da família do sacerdote
“E esta é para ti a oferta separada das suas dádivas: Todas as ofertas
movimentadas dos filhos de Israel, dei-as para ti, para teus filhos e para tuas
filhas contigo, por estatuto perpétuo; todo aquele que estiver puro na tua casa
as comerá. Todo o melhor do azeite e todo o melhor do mosto de uva e do grão,
as suas primeiras ofertas, que derem ao Eterno, dei-as a ti. As primícias de
tudo o que houver na sua terra, que trouxerem ao Eterno, serão para ti; todo
aquele que estiver puro na tua casa as comerá. Tudo que for consagrado a Deus,
em Israel, será para ti. Todo o que abrir a matriz de todo ser vivente, que
oferecerem ao Eterno, do homem e do animal, será para ti; porém, resgatarás os
primogênitos do homem e resgatarás os primogênitos do animal impuro. E os que
deles hão de ser resgatados, os resgatarás na idade de um mês, segundo a tua
avaliação, por cinco siclos de prata, seguindo o siclo da santidade, que é de
20 guerás. Mas o primogênito do boi, ou o primogênito do carneiro ou o
primogênito do bode, não remirás; eles são santidades e o seu sangue espalharás
sobre o altar e sua gordura farás queimar, em oferta queimada para ser aceita
com agrado pelo Eterno. E a carne deles será para ti como o peito da oferta
movimentada e como a espádua direita – será para ti. Todas as ofertas
separadas, das santidades que separarem os filhos de Israel para o Eterno,
dei-as a ti, a teus filhos e a tuas filhas contigo, por estatuto perpétuo; ela
é uma aliança perpétua como a do sal diante do Eterno, para ti e para tua
descendência contigo.” 2
Seria tolice achar que Deus não teria nenhuma preocupação com a família
daquele que lhe servia como sacerdote. Depois de cuidar do oficiante, o povo
deveria também cuidar da família dele, afinal de contas, eles não podiam
trabalhar na terra para gerar seu próprio sustento.
“E o Eterno disse a Aarão: ‘De suas terras não herdarás, e não haverá
para ti parte entre eles; Eu sou a tua parte e a tua herança entre os filhos de
Israel.’” 3
Se Deus era a herança do sacerdote, que grande herança era. Todo o povo,
todos os irmãos – filhos do mesmo pai Abraão – deveriam promover o sustento da
família daquele homem que tinha o árduo trabalho de equilibrar a balança das
relações Deus-homem/homem-Deus. Nada mais justo.
Maasser Richon – primeiro dízimo.
A retribuição aos levitas por seus serviços.
“E aos filhos de Levi, eis que tenho dado todos os dízimos em Israel por
herança, em troca do serviço que eles prestam na tenda da reunião. E não se
aproximarão mais os filhos de Israel à tenda da reunião, para que não levem
sobre si pecado e morram. E os levitas servirão no serviço da tenda da reunião,
e eles levarão sobre si a sua iniquidade – estatuto perpétuo pelas vossas
gerações; e no meio dos filhos de Israel não terão herança. Porque os dízimos
que os filhos de Israel separarem em oferta ao Eterno dei aos levitas por
herança; portanto Eu lhes disse: No meio dos filhos de Israel não terão
herança.” 4
Todos os textos sagrados do Antigo Testamento, que mencionam os levitas,
o fazem definindo-os como os serviçais dos lugares de adoração. Fossem no
Tabernáculo – a Tenda Sagrada – e posteriormente nos Templos – o construído por
Salomão, depois o construído por Herodes. Eles eram os zeladores, aqueles que
cuidavam da limpeza, da organização, da liturgia, dos instrumentos musicais e
os executavam quando era necessário. No deserto, somente eles podiam carregar o
Tabernáculo e a Arca da Aliança. A Torah diz que por esse trabalho eles
também deveriam receber a retribuição do povo, sendo providos de tudo que
precisassem para uma vida digna.
Maasser Sheni ou Segundo Dízimo.
Família e “assassino” comem juntos diante de Deus.
“Certamente separarás o dízimo de todo o produto das tuas sementes, que o
campo produzir de ano a ano. E o comerás diante do Eterno, teu Deus, no lugar
que escolher para ali fazer habitar Seu Nome; o dízimo de teu grão, teu mosto e
teu azeite, e os primogênitos do teu gado e do teu rebanho, para que aprendas a
temer o Eterno, teu Deus, em todo o tempo. E se o caminho te for longo, de modo
que não o possas levar, por estar longe de ti o lugar que escolher o Eterno,
teu Deus, para ali pôr o Seu Nome, pois te abençoará o Eterno, teu Deus, para
teres produção abundante; então o trocarás por dinheiro, e atarás o dinheiro em
tua mão e irás ao lugar que o Eterno, teu Deus, escolher. E darás este dinheiro
por tudo o que desejar a tua alma – por gado, ou por rebanho, ou por vinho, ou
por vinho velho ou por tudo o que te pedir a tua alma; e comerás ali diante do
Eterno, teu Deus, e te alegrarás, tu e a gente de tua casa. E ao levita que
está em tuas cidades, não deixarás de dar-lhe (o teu primeiro dízimo), pois não
tem parte nem herança contigo.”5
Como mostra o texto Sagrado, a prática do “segundo dízimo” era
anual. No mês em que a produção agrícola estivesse pronta, todas as décimas
partes de cada cultura, fossem hortaliças, frutas, legumes, cereais, e tudo
mais que fosse produzido no campo de plantação da família, deveria ser separado
para que fosse comido por ela em uma cidade e lugar determinados por Deus. O “lugar
onde estava Seu Nome”, normalmente era Jerusalém, pois era lá que estava o
Grande Templo. O texto também mostra que um levita faria parte da celebração
familiar. Mas porquê aquele levita deveria estar presente em uma celebração que
pertencia somente aos membros da família? A resposta é simples: porque ele
era a figura do assassino do primogênito da família, ele representava o
assassino que deveria ser eternamente perdoado e transformado em primogênito,
ele deveria ser incorporado ao grupo familiar. Essa é a pedagogia Divina do
resgate das relações familiares, onde a figura do assassino primordial
toma o lugar do primogênito primordial.
O ato de comermos juntos, em família, faz com que as rivalidades, as
animosidades, as inimizades, as mágoas, as indiferenças, as desavenças, sejam endorcisadas,
trazidas pra dentro, mastigadas e engolidas. Dentro de nós, essas diferenças
deixam de ser externas e passam a ser internas, deixam de ser “nossas” e
passam a ser “minhas”. No ato de comermos em família, cada um de nós
deixa de ser Jacó e Esaú para se transformar em um só Israel,
nos tornando os únicos responsáveis pela transformação de tragédias em bênçãos.
Esse ato de restauração das relações externas com base na cura das relações
internas está na pessoa e na presença do “levita”, que é antagonicamente
sagrada. O oficiante do Santo, que cura as relações familiares era a figura
daquele que “feriu” quando “matou” o venerado “primogênito”.
A figura do “levita” nas nossas reuniões familiares não somente nos
abençoa, mas nos santifica, retirando de nós, aquele – primogênito – que
nos faz idólatras. Esse oficiante sagrado nos chega como um necessitado,
precisando de nossa misericórdia, pedindo nosso perdão. Um estranho, um
necessitado, um santo, um assassino. Deus estimulou – e ainda estimula – seus
filhos a serem literalmente abençoados pela tragédia. Receber de Deus é
retribuir Deus.
Maasser Ani – o Dízimo do pobre.
Uma noite para sermos todos iguais.
“Ao fim de três anos tirarás todos os dízimos de teu produto, naquele
ano, e os depositarás dentro das tuas cidades. E virá o levita, que não tem
parte nem herança contigo (e tomará o primeiro dízimo), e o peregrino, o órfão
e a viúva, que estão nas tuas cidades (tomarão o dízimo do pobre) e comerão e se
fartarão, para que o Eterno, teu Deus, te abençoe em todas as obras que as tuas
mãos fizerem.” 6
Mais uma vez, a família era reunida para participar de um banquete. Eles
iriam comemorar a colheita abundante, oferecendo “uns” aos “outros”
o melhor de si mesmos. Ao final de três anos de trabalho, todos se reuniam em
volta da mesa, trazendo tudo que tinham. De amores a rancores, de amizades a
inimizades, tudo deveria ser oferecido nesse altar – a comunhão – e queimado no
fogo da reconciliação, com suas chamas quentes de amor e tolerância.
Não posso afirmar que o levita que participava desse segundo momento
fraterno, era o mesmo que participara do momento anterior; mas isso é possível,
já que ele havia se tornado o “substituto” do “filho assassinado por
ele mesmo”. Além desse “assassino-filho”, outras figuras
participavam desse banquete: o estrangeiro, o órfão e a viúva. Os “sem
família”. Deus impôs a prática abraâmica de: “o que é meu é teu, e o que
é teu é teu”. A pedagogia Divina era a mesma, comer as indiferenças e
transformá-las em igualdades.
Trazer os “meus outros” para dentro das “minhas portas”,
sempre é extremamente desconfortante; mas a pedagogia do Eterno é a mesma,
comer as diferenças, elimina-las com a boca, tragá-las, engoli-las,
processá-las, transformá-las e expulsá-las de nós, como elas realmente são: fezes.
Jesus disse que o que contamina as relações familiares não é o que
comemos, é o que falamos. Quando comemos nossas antipatias, sobram empatias e
simpatias; quando comemos as indiferenças e as diferenças, sobram igualdades, e
similaridades. Jesus chegou a ser grosseiro quando afirmou no livro do levita
Mateus, que essa “comida” tem que ser comida por todos para que tudo que
nos separa como família vire bosta.
Mas Jesus não termina sua afirmação sagrada falando em fezes, ele diz que
depois que tudo o que estiver no “estômago” for evacuado, o coração deve
ser cheio das vitaminas que fortalecem os relacionamentos: “... a boca fala
o que sobeja do coração” 7. Comer nossas raivas, nossos ódios –
e depois “evacuá-los” – faz com que tenhamos espaço no coração para as
palavras e gestos de amor. Precisamos viver nossas tragédias para podermos
viver as nossas bênçãos, e na prática de retribuir o dízimo, Deus nunca deixou
de observar a máxima que produz bênção: toda família é uma tragédia em
potencial, e toda tragédia carrega consigo uma bênção proporcional, toda bênção
é fonte de um amor incondicional. O reconhecimento dessa relação divina
entre família, tragédia e bênção resulta no dízimo. Nas práticas que envolvem
alimento, o dízimo é devorado junto com a tragédia para se transformar na
bênção do “amarmos uns aos outros”.
***
Notas – Todas as famílias, todos os dízimos.
1. Números 18:8 a 10 - BH, Editora Sêfer, 2006.
2. Números 18:11 a 19 - BH, Editora Sêfer, 2006.
3. Números 18:20 - BH, Editora Sêfer, 2006.
4. Números 18:21 a 24 - BH, Editora Sêfer, 2006.
5. Deuteronômio 14:22 a 27 - BH, Editora Sêfer, 2006.
6. Deuteronômio 14:28 a 29 - BH, Editora Sêfer, 2006.
7. Mateus 12:34 – BJC, Editora vida, 2010.
Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC
- Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia
Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia
Edição Pastoral
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