“E vendo Moisés que o povo estava despido, porque Arão o havia deixado
despir-se para vergonha entre os seus inimigos, pôs-se em pé Moisés na porta do
arraial e disse: Quem é do SENHOR, venha a mim. Então se ajuntaram a ele todos
os filhos de Levi. E disse-lhes: Assim diz o SENHOR Deus de Israel: Cada um
ponha a sua espada sobre a sua coxa; e passai e tornai pelo arraial de porta em
porta, e mate cada um a seu irmão, e cada um a seu amigo, e cada um a seu
vizinho. E os filhos de Levi fizeram conforme a palavra de Moisés; e caíram do
povo aquele dia uns três mil homens. Porquanto Moisés tinha dito: consagrai
hoje as vossas mãos ao SENHOR; porquanto cada um será contra o seu filho e
contra o seu irmão; e isto, para que ele vos conceda hoje uma bênção.” 1
Moisés, o Legislador.
CENTENAS DE ANOS DEPOIS dos episódios primordiais do dízimo protagonizados por Abraão 2
e Jacó 3, ambos por conta de tragédias familiares, livramentos e
bênçãos Divinas, a família cresceu e o cenário mudou. As tragédias se
apresentaram maiores e com bênçãos proporcionais.
Depois de ter salvado sua terra da fome, José, um bisneto de Abraão
tornou-se governador de todo o oriente médio naquele período histórico 4.
Não seria difícil entender que o dízimo de José, por Deus ter cuidado de sua
família, mesmo depois dos irmãos lhe terem vendido como escravo e enganado a
Jacó, seu pai, foi retribuído, sendo ele o cuidador de todas as famílias
daquele lugar, em sua época. O cuidado do Misericordioso para com a família do
bisneto de Abraão transformou-se em salvação mundial, um livramento global
naquele mundo primitivo. Mas esse fato não entrou para a história daqueles que
foram salvos, foi incorporado à história da família de Abraão e perpetuado em
tradições orais até o momento em que foram registrados por meio da escrita.
5 A máxima “o que é meu é teu, e o que é teu é teu” 6,
foi posta em prática por José, o neto governante. Porém, depois de sua morte, o
caráter sodomita – possuir pela força – dos habitantes nativos voltou a oprimir
a família do patriarca. Escravizada 7, a família de Abraão só
conheceu a liberdade, muitas gerações depois. Entre esses estava Moisés 8,
que se tornou o libertador da família.
Tendo libertado seus familiares dos escravagistas, Moisés subiu a um
lugar especial, dentro de uma cadeia de montanhas conhecida como cordilheira do
Sinai. Naquele lugar especial, misterioso e oculto, a voz do próprio Elohim
se fez ouvir a todos os filhos de Abraão.
A família havia crescido, eram outras pessoas, mas o Deus continuava o
mesmo, o Deus Superior pronto a abençoar os filhos de seu amigo Abraão. Adonai
estabeleceu algumas regras para a boa convivência entre os irmãos, filhos
diretos de Abraão e Ele, o Deus de toda a terra. Na relação com o Todo
Poderoso, os primogênitos de cada família deveriam servir como sacerdotes.
Intermediários entre a família e seu Deus 9. Porém, onde existe uma
família, existe uma tragédia potencial. Enquanto dialogava com seu Deus, Moisés
foi alertado por Ele, que seus irmãos haviam perdido o controle da moral.
Aarão, o sacerdote do povo e irmão de Moisés, cedeu à tentação de transformar
pedra em pão e organizou um festejo onde todos cultuaram a si mesmos. Mais uma
vez o desconhecimento entre os conceitos de liberdade e liberalidade, fez da
família de Abraão, protagonista de uma tragédia. 10
Deus havia libertado o povo dos opressores externos, mas os opressores
ainda estavam dentro de cada um. O povo não se sentia livre, se sentia
liberado. Liberado do chicote, liberado da obrigação, liberado da imposição,
liberado da restrição. Liberação não é libertação. A libertação é interna e
pessoal. A liberação é comportamental e externa. Naquele momento em que o
sentimento de liberalidade aflorou de forma descontrolada, a libertinagem tomou
conta de quase todos. Os primogênitos, sacerdotes familiares, não coibiram o
comportamento confuso e descontrolado de seus parentes, pelo contrário, o texto
deixa implícito que eles participaram de bom grado dos festejos hedonistas.
Naquele momento a tragédia foi mais uma vez deflagrada pelo Todo Poderoso: morte
aos primogênitos que não agiram como sacerdotes familiares. O escrito
sagrado diz que naquele dia, o fratricídio chegou aos três mil assassinatos.
11 Três mil famílias perderam seus primogênitos. Que dor, que horror, que
tragédia.
Daquele momento em diante, o ato voluntário e altruísta de retribuir a
bênção, o livramento, o cuidado, a cura, a vida e a morte, além do sustento,
providos por Deus, passou a ser uma obrigação, uma Lei. Somada a obrigação de
lembrar que “Deus é Deus”, e que “sem Ele ninguém é nada”, estava
à imposição de pagar pela vida de cada primogênito que nascesse daquele dia em
diante 12. O resgate pelos primogênitos havia sido mencionado por
Deus a Moisés no dia da liberdade, no dia em que os primogênitos dos
escravagistas foram mortos pelo “Anjo da Morte” 13. Deus
havia determinado que na história futura dos filhos de Abraão, os primogênitos
seriam seus sacerdotes, mas isso não aconteceu. A profecia de “pagar pelo
filho”, ato que possivelmente teve como base o feito de Abraão quando
salvou Ló, tomou as cores vivas de um castigo Divino.
Toda família tem uma tragédia, toda tragédia gera uma aproximação entre
os familiares, essa aproximação é abençoada por Deus, e reconhecer esses
acontecimentos como bênção, gera uma retribuição chamada dízimo. Mas a partir
daquele momento, o dízimo não seria mais uma retribuição voluntária, agradecida
e cheia de alegria; ele seria uma atitude devocional, temerária, impositiva e
punível, caso não ocorresse. A história de Abraão e seu dízimo alegre, grato e
voluntário, se tornou opaca, envolta pelo obrigacionismo religioso de
seus filhos. De lá, para os nossos dias, foi só um pulo e muitos acréscimos
humanos.
Depois da tragédia promovida pelo assassinato dos primogênitos no deserto
do Sinai, os filhos de Levi, os “assassinos sagrados”, passaram a ocupar
o lugar dos primogênitos “mortos para sempre”. Esse comportamento
assassino, mesmo que orientado por Moisés não ficou impune, eles perderam o
direito de possuir bens, podiam somente morar em determinadas cidades onde
construiriam suas casas. Não poderiam ter mais nenhuma posse. Seriam ainda
totalmente responsáveis pelos serviços na Tenda do Encontro – o Tabernáculo – e
posteriormente pelos serviços no Templo. Nessa atividade zeladora, eles seriam
os únicos culpados se algo de errado fosse feito nos lugares sagrados. Aqueles homens
que se tornaram sacerdotes não poderiam trabalhar na terra, principal fonte de
renda familiar, não poderiam operar nenhum tipo de negócio, não poderiam fazer
nada mais, além do serviço religioso. Nesse castigo sagrado, o Soberano
determinou que o sustento daqueles homens – sacerdotes e levitas – seria
provido pelo povo, por meio de dádivas ofertadas liturgicamente. Além dos
sacerdotes, havia também os pobres, os órfãos, as viúvas e os estrangeiros.
Pessoas que por algum motivo não possuíam nenhuma possibilidade de gerar seu
próprio sustento. Esses deveriam ser sustentados pelos oficiantes do
Santo e também pelas famílias, em algumas ocasiões específicas. Todos deveriam
cuidar uns dos outros, afinal todos eram irmãos, filhos do mesmo pai Abraão.
A palavra “dízimo” em hebraico é “maasser”, seu significado
espiritual é “a transformação que vem do olhar benevolente para com o
necessitado” 14. Essa transformação íntima, interna de cada
indivíduo doador, de cada família ofertante, era o objetivo do Eterno ao instituir
o dízimo como prática devocional. Mas parece que isso não foi entendido por
alguns filhos de Abraão, e com o passar do tempo, o dízimo se transformou em
mera obrigação. Com isso, alguns filhos do patriarca tornaram-se cínicos,
gerenciados pelo ego, destituídos de qualquer senso de familiaridade.
Esqueceram totalmente que o dízimo era fruto transformador da vida familiar. O
povo esqueceu que as tragédias sempre foram instrumentos do Eterno para a
mistura de emoções, de lágrimas e de bênçãos.
Dízimo é a retribuição pela vida familiar que temos. Uma vida rica em
nuances, matizada por tragédias e aprendizados, gratidão e bênção. Esses
matizes tantas vezes assustadores é que nos transformam em pessoas melhores.
***
No tempo do profeta Malaquias Deus era roubado, e esse roubo acontecia
porque o dízimo era tratado como investimento, como negócio, como obrigação
pura e simples. O profeta diz em seu livro, que o dízimo havia deixado de ser
um ato de retribuir as bênçãos recebidas e se tornado um conjunto de
contribuições e pagamentos pelo que se desejava obter do Eterno. Esse conceito
mundano de dízimo se perpetuou até os dias de hoje. Fato amplamente enfatizado
pelos teólogos assertivos da doutrina dizimal.
Malaquias, conhecedor dos rumos tortos que a classe sacerdotal promovera
ao dízimo deixou-se possuir pelo Eterno e vociferou:
“... Hei de enviar Meu mensageiro e ele há de desobstruir o caminho para
Mim; de súbito, então, o Senhor, a quem buscais, virá a Seu Templo, pois o
mensageiro da aliança do Eterno, a quem tanto desejais, estará chegando! – diz
o Eterno dos Exércitos. Mas quem terá condições de suportar (os acontecimentos
que caracterizarão) o dia da sua vinda, e quem sobreviverá à sua chegada?
Porque ele agirá como o fogo purificador e como a lixívia que retira toda a
impureza; assim como há de fundir a prata, separando-a da escória, trará
purificação aos filhos de Levi, refinando-os como o ouro e a prata, para que se
tornem, perante o Eterno, aqueles que Lhe apresentarão oferendas com retidão.
Então as oferendas de Judá e de Jerusalém serão prazerosamente aceitas pelo
Eterno como nos antigos dias e nos anos passados. Ele Se acercará de vós para o
julgamento; será testemunha contra os adivinhos, contra os adúlteros, contra os
que juram em falso, contra os que oprimem o trabalhador retendo seus salários,
contra os que prejudicam à viúva e ao órfão, iludem o estrangeiro e não Me
temem – diz o Eterno dos Exércitos.
Porque Eu, o Eterno, não mudei (Meu padrão de julgamento), e vós, ó
filhos de Jacob, não fostes consumidos. Desde os dias de vossos pais vos
afastastes de Meus preceitos, e não os guardastes. Voltai agora para Mim e
voltarei para vós – diz o Eterno dos Exércitos. Mas dizeis: ‘De que temos que
nos arrepender?’ – Pode um homem roubar a Deus? Todavia, vós Me roubais!
Contudo perguntais: ‘Como temos Te roubado?’ – Nos dízimos e nas oferendas que
negais! Ainda que tenhais recebido uma maldição (como advertência), todos da
nação continuais a Me roubar. Trazei todo o dízimo ao tesouro da Casa, para que
haja alimento em Minha Casa; testai-me agora nisto! – diz o Eterno dos
Exércitos – (e vereis) se não vos abrirei as janelas do céu e vos derramarei
uma bênção, para que haja mais do que suficiente! E repreenderei o (locusto)
devorador por vosso bem, e não destruirá os frutos de vossa terra, nem vossa
videira perderá seu fruto, deixando-o cair antes que o venhais a colher – diz o
Eterno dos Exércitos. E sereis louvados por todas as nações por serdes uma
terra de delícias – diz o Eterno dos Exércitos. Ásperas foram, contra Mim,
vossas palavras – diz o Eterno. – Mas questionais: ‘O que dissemos contra Ti?’
– Dissestes: ‘É inútil servir a Deus. Que proveito alcançamos por ter seguido
Seus preceitos e nos termos mantido submissos perante o Eterno dos Exércitos?
Portanto, louvaremos os iníquos! Porquanto os malévolos se engrandecem;
provocam o Eterno e escapam impunes!’ – Então, os tementes ao Eterno falaram
entre si, e o Eterno atentou e ouviu, e perante Ele foi composto um livro de
recordação, para que dele constem os que O temem e O mantêm em seu pensamento.
Estes serão Meu tesouro – diz o Eterno dos Exércitos – no dia em que hei de
fazer. E Me compadecerei deles como um homem se compadece do filho que o serve.
Então, voltareis a discernir entre o justo e o malvado, e entre o que serve a
Deus e o que não O serve.
Pois aproxima-se o dia que se abrasará como um forno, no qual todos os
ímpios e malévolos serão como a palha; e neste dia serão queimados a tal ponto
– diz o Eterno dos Exércitos – que deles não sobrará nem raiz nem ramo algum.
Mas para aqueles de vós que temem o Meu Nome, levantar-se-á o sol da justiça
trazendo saúde (eterna) em seus raios, e florescereis como crias bem tratadas
em seus estábulos. E esmagareis os iníquos, que se converterão em cinzas sob as
plantas de vossos pés, naquele dia.” 15
***
Notas – Uma grande família, uma enorme
tragédia, muitas bênçãos, todos os dízimos.
1. Êxodo 32:25-29 – BACF, Versão Digital 6.7, maio 2010.
2. Gênesis 14:20.
3. Gênesis 28:22.
4. Gênesis 41:38 a 46.
5. William M. Schniedewind: COMO A BÍBLIA TORNOU-SE UM LIVRO, capítulo:
“Como a Torá se tornou um livro”, p.161 e seguintes.
6. A Ética dos Pais 5.14.
7. Êxodos 1:8-14.
8. Êxodo 3:10.
9. Êxodo 13:2.
10. Êxodo 32:1-6.
11. Êxodo 32:28.
12. Êxodo 43:20;
13. Êxodo 12:23
14. Definição do autor, com base em estudos dos significados espirituais das
letras do alfabeto hebraico.
15. Malaquias 3. BH, Editora Sêfer, 2006.
Abreviações
BACF - Bíblia Almeida Corrigida e Fiel; BJC
- Bíblia Judaica Completa; BH - Bíblia Hebraica; BNVI - Bíblia
Nova Versão Internacional; ES - Escrituras Sagradas; BEP - Bíblia
Edição Pastoral
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