TALVEZ
O MAIS IMPRESSIONANTE em toda a concepção espiritual é que ela só produza um
único termo que lhe é singular. Só uma palavra pertence exclusivamente ao campo
da espiritualidade, e a grande maioria das pessoas tem dificuldade em
compreendê-la, apesar de utilizá-la com frequência. Trata-se da
palavra-conceito: sagrado.
No
texto bíblico, o Criador se dá ao trabalho de identificar essa palavra com a
tarefa maior da espiritualidade: “Sejam sagrados, porque eu, seu Criador,
sou Sagrado.” O que seria “ser sagrado” ? A raiz da palavra - KaDoSH - em
hebraico arcaico significa “colocar à parte” ou “separar”.
A
própria qualidade da Criação, como descrita no texto bíblico, é a de separação.
Segundo este, o poder transformador e criador está no ato de separar e de
diferenciar. Separam-se céus da terra, luz das trevas, mares dos continentes,
animais uns dos outros e o ser humano dos animais. A diferença não só cria,
como parece preservar a própria vida, uma vez que sabemos hoje ser a
biodiversidade essencial para o equilíbrio e a conservação do meio ambiente. E
não parece se tratar apenas de diferenças coletivas ou de espécies. A própria
diferença entre os indivíduos é marca de saúde, como desvenda hoje a genética.
A
reprodução de seres iguais empobrece a tal ponto a vida, que a coloca em risco.
A diversidade entre os seres vivos produz a cada procriação um ato de criação
de um diferente.
A
possibilidade hoje de criar-se geneticamente seres iguais uns aos outros nos coloca
diante da criação de seres sem espírito. Isso porque a qualidade maior
desta faculdade invisível é a própria diferença, ou a possibilidade de ser
sagrado. Ter um espírito é conter um pedaço de um infinito
quebra-cabeça, no qual a condição de ser parte do todo é conter uma diferença
que se encaixa em todas as outras diferenças.
A
característica maior dessa diferença é que ela agrega, em vez de desagregar. É
ela que nos faz pertencer ao conjunto.
Produz-se
novamente uma santa contradição pela qual para fazer parte temos de ser
diferentes. Ou melhor, o que nos une não é a igualdade, mas justamente a
diferença. É nela que está o Criador em nós; é ela a diferença que é a
semelhança entre todos nós e também entre nós e o Criador. Essa diferença seria
em si o elemento transcendente em cada um de nós. A marca de nossa
singularidade seria em si o espírito soprado em cada um de nós, como se
fôssemos, individualmente, todos, como Adão. Em vez de insuflados com
um vento-alma, seríamos insuflados com a diferença.
Estaria
assim plantado em nós o sagrado.
Somos colocados à parte, feitos diferentes, para podermos existir e nos
identificar com tudo o que é solitário em sua diferença. Nossa melancolia por
não encontrar um par só se dissolve no encontro com um outro verdadeiramente
diferente que é, portanto, como nós.
A
espiritualidade seria, dessa forma, o constante mimetismo desta condição, com a
função de aplacar nosso desconforto por nossa sensação de separação e solidão.
Transcender seria realizar rituais ou viver momentos que nos relembrassem ou
colocassem em contato com esse sentimento de proximidade, mas sempre pela
diferença. A igualdade nos afasta, nos desumaniza, ou melhor, nos extirpa o
espírito.
Sagrar
ou fazer sagrado significa tornar distinto. Separar um dia especial dos outros dias, como
faz o Criador com o sábado, é ensinar ao ser humano o segredo de não ficar
sozinho neste universo. Diferencie e você vai encontrar uma santa paz, um
encontro com uma essência que é a sua. Esse artifício para estabelecer
encontro é a ideia básica por trás do antigo Templo, em Jerusalém, e que é,
provavelmente, a matriz de todos os templos que já existiram, que hoje existem
e que existirão no futuro. Como em uma cena de ficção científica, as criaturas
descobriram uma forma de conexão com seu Criador. Simples de se engendrar, mas
difícil de se compreender. O Templo de Jerusalém criou conceitos de diferença,
de sagrado. Havia um país diferente dos outros, nele uma cidade diferente das
outras, e nela um monte diferente dos outros.
Nesse
monte, havia um lugar, um templo, onde dentro dele havia um lugar que era
diferente dos outros lugares, e que se chamava o “sagrado dos sagrados”.
Tomavam conta desse templo sacerdotes que eram pessoas de uma tribo que era
diferenciada das outras tribos, e entre essa tribo pessoas específicas de uma
família que era diferente de outras famílias dessa tribo. E nele se celebravam
dias que eram diferentes de outros dias. O espaço diferente, no tempo
diferente, no ser humano diferente, é a antena parabólica que viabiliza um
contato com o universo profundo e difuso.
Esta
é a dificuldade maior das tradições espirituais. Por um lado, expressar
eticamente que os seres humanos são iguais e, ao mesmo tempo, realçar sua
diferença, para que possam ser verdadeiramente iguais. Razão pela qual as
religiões ora se perdem no conceito de que são diferentes e matam; ora se
perdem na ideia de que são iguais e perdem a potência espiritual.
Há
uma história sobre um menino que costumava se esconder em um bosque todos os
dias, depois das aulas. Certa vez, seu pai lhe perguntou o que ele fazia
escondido no bosque todos os dias. “Eu... eu converso com Deus”, disse o
menino. “Mas, meu filho”, reagiu o pai, “por acaso você não sabe que
Deus está em todos os lugares? Você não precisa ir até o bosque para falar com
Deus. Ele e o mesmo, se você conversar com ele aqui em casa ou no bosque!” “É
óbvio que Deus é o mesmo, meu pai”, respondeu o menino serenamente, “mas
eu não sou o mesmo!”
Buscamos
a diferença em tradições e templos, não porque Deus é diferente, mas porque
somos diferentes. E só nessa diferença é que o espírito momentaneamente se
torna real para nós. A partir desses instantes passageiros, nos tornamos
transcendentes e nos irmanamos em diferença com tudo o que é diferente. A sutileza
entre sagrar e segregar é a sintonia fina que distingue a espiritualidade
inteligente da ignorância espiritual.
A
periculosidade das manifestações espirituais é sempre esta. Como não permitir
que o ato deliberado de “colocar à parte” ou “separar” em rituais
produza segregação, em vez de sagrado. A segregação não é uma diferença que
produz comunhão. Ao contrário, é a celebração do ego, e não do espírito.
Talvez
pudéssemos dizer que o espírito é o que é diferente em nós e que nos iguala. O
ego, por sua vez, é aquilo que é igual em todos nós, e que nos diferencia.
A
verdade é que a espiritualidade fala de coisas que não se manifestam, mas que
estão por trás de toda manifestação. A inteligência está não só em reconhecer
esta sutileza, mas em modificar as matrizes de entendimento e funcionamento de
nossas vidas. Diz respeito a permitir-nos delegar maior poder a nossos sensos,
para que nos conduzam não necessariamente ao sucesso ou ao triunfo, mas ao
bem-estar. A paz está em sermos tão profundamente diferentes - aquietando
nosso fogo interno, por honrar nossos potenciais que são distintos - e, ao
mesmo tempo, sermos tão profundamente iguais - aquietando nossa consciência.
Essa
integração é santa. É santa
porque nos coloca à parte, se não no universo absoluto, então, no universo que
conhecemos. O grande objetivo de toda a inteligência, como dissemos
anteriormente, é o encontro. Não temos qualquer outro uso para a inteligência
além do de reencontrar o caminho que nos leva de volta ao “jardim” do
qual nos originamos.
Lá
atrás, quando, fazendo uso da árvore da sabedoria, saímos em um derradeiro
passeio, descobrimos o exílio. Nosso único instrumento de sobrevivência se
tornou essa sabedoria pela qual nos perdemos de casa. Mas isto é um engano. Nossos
instrumentos são dois: a sabedoria com a qual partimos e o profundo desejo de
retorno e reencontro. Sem o último, o primeiro nos leva mais longe. Um
longe que parece conquista, mas que na realidade nos faz mais perdidos.
Como
na história que citamos anteriormente do homem perdido na floresta. Quando ele
finalmente encontra a luz de uma lamparina, descobre que é a lamparina de um
cego que, como ele, estava perdido. Frustrado, ele acha que ali não existe
nenhum ganho real, nada que possa lhe dar mais esperança nesse encontro. Triste
engano. O cego não precisa ver a saída, para o cego, a sensação de floresta e
de estar perdido em uma imensidão não existe.
A
luz de sua lanterna, totalmente desnecessária para ele, é fundamental para que
o outro o veja. A função dessa luz é atrair aqueles que têm dificuldade
em não ver e ensinar-lhes uma paz que sua visão não lhes permite. Seu “enxergar”
lhes traz o desespero da imensidão e do desconhecimento da saída. Juntos, eles
têm mais recursos, ou talvez todos os recursos. Aquele que não enxerga produz
luzes para quem enxerga, para que conheçam a paz da cegueira.
No
uso do enxergar para promover encontros com o que não enxerga está o nosso
grande recurso. Porque o galo não vê, mas sabe distinguir. Porque o escuro é a
angústia e a redenção. E a proposta do cego é boa. Acenda lamparinas para
que os outros possam nos encontrar, mas não faça uso delas para encontrar a
saída. A saída só se apresenta aos olhos que se acostumam com o escuro.
Porque aqueles que estão acostumados com a penumbra não têm problemas em
discernir as formas que existem no escuro.
E
a floresta se faz casa; e o exílio termina no encontro dos exilados. E quem com lamparina continua buscando a
saída, nada disso vê.”
Nilton
Bonder, Códigos da Inteligência, A Suprema Contradição: A diferença que nos
iguala. (Grifos meus.)
***
Num próximo texto tratarei de uma aplicação atual para essa
diferença necessária na vida de todos nós.
No Messias que nos diferencia, mas não nos discrimina.
Boa semana a todos.
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