"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A ARTE DE COM-VIVERMOS.


“Se eu sou eu porque você é você, e você é você porque eu sou eu; então nem eu sou eu e nem você é você. Mas se eu sou eu porque eu sou eu, e você é você porque você é você; então eu sou eu e você é você, e nós podemos conversar.” Ditado Iídiche.

Viver sozinho é impossível. Essa impossibilidade está mostrada em todas as narrativas “criacionistas” ou “evolucionistas” da origem da humanidade. Na narrativa judaico-cristã, dessa origem, ouvimos a frase singular e emblemática do Todo Poderoso: “não é bom que o homem esteja só.” Porém pretendo fugir da generalidade do termo “homem”, pois no hebraico “homem” é “Adam”, que também é humanidade – espécie humana. Em sendo assim, a dedução Divina é óbvia: NÃO É BOM PARA OS SERES HUMANOS UMA VIDA SOLITÁRIA.

Mas viver em comunidade é difícil para a maioria de nós. Seja um casal, sejam irmãos, sejam amigos, seja lá que grupo for. Essa dificuldade se dá por razões singulares e não plurais, a dificuldade de com-vivência – vivência com o outro – só acontece quando os convivas ou conviventes não sabem quem são e tentam a todo custo fazer com que os outros sejam o que “ele é”, ou tenta-se “ser” o que os outros “são”. Essa é a enfermidade que dificulta e às vezes até impede as relações afetivas.

A grande maioria de nós não sabe quem é. E não sabe por que ninguém nunca nos ensinou sobre nós mesmos. Aprendemos sobre tudo e sobre todos, mas não aprendemos sobre nós mesmos. Infelizmente, muitas vezes o que “sabemos” sobre nós, vem dos conceitos estranhos a nós. Muitas vezes crescemos “sabendo” que somos preguiçosos, burros, descomprometidos, endiabrados, levianos, filhos da &$#@, sacanas, esculhambados, e por ai vai. Crescemos “sabendo” que somos tudo o que não presta. Mas quando isso não ocorre (e é muito raro), aprendemos que “somos” pessoas de difícil relacionamento, e como é isso que sabemos sobre nós, fazemos questão de mostrar a todos que somos assim, um ser difícil de relacionar-se com outras pessoas. Alegamos isso mostrando nossas mazelas, nossas manias, nossas besteiras existenciais, como se fossem nossos bibelôs de estimação, nossas medalhas, nossos troféus. “Sou uma pessoa difícil de se relacionar”, bradamos com orgulho.

Na verdade fazemos isso porque não sabemos quem realmente somos, achamos que sabemos, e isso faz com que nós nos esforcemos para estragar nossas relações, porque aprendemos que não prestamos, que não podemos viver em comunidade porque somos pessoas difíceis. Quanta tolice.

Só pode haver relacionamento entre pessoas se “elas forem elas”. Só pode haver convivência se cada um for cada um. Quando “eu sou eu” e “você é você” – ou vice versa – é que as relações afetivas se efetivam. Não podemos estabelecer um relacionamento com ninguém quando não sabemos quem somos. A prova de fogo – a purificação – de quem realmente somos se estabelece quando podemos deixar as pessoas serem quem elas realmente são. Quando “eu sou eu”, não tenho nenhum problema em deixar “você ser você”, seja você quem for. O problema está quando eu acho que sei “quem sou”, passo a impor esse “saber” aos outros, e nessa atitude se revela que “não sou” quem digo ou acho “que sou”, pois não aceito o outro como ele é.

Rabi Bonder mostra isso de forma clara no texto que reproduzo:

“Um dos pilares da ética e do Humanismo no Ocidente é a frase bíblica, ‘ama teu próximo como a ti mesmo’. Central para o monoteísmo ético-judaico e fundadora para o cristianismo, destacada por Jesus e por Rabi Akiva, e traduzida popularmente por Hillel como: ‘não faça aos outros o que não queres que façam a ti’. Essa frase é a origem do direito e das conquistas de cidadania que se consagraram no Ocidente. Há um aspecto dessa frase, entretanto, que me parece particularmente importante. Trata-se da possibilidade de se ler no hebraico original, em lugar de ‘próximo’ (lê-reecha), uma outra palavra de grafia idêntica e cujo significado é ‘ruim’ (lê-raecha). A leitura da frase seria então: ‘Ama o teu ruim como a ti mesmo.’ Aprender a amar o que há de ‘ruim’ em nós como parte de nós mesmos não é uma apologia à complacência, à resignação ou à imperfeição. É um ato de ‘endorcismo’, de integração, sem o qual não há tolerância. Perceber que a palavra ‘outro’ (próximo) tem a mesma raiz que a palavra ‘ruim’ é entender um pouco de nossa psique. O que é diferente é automaticamente visto como ‘ruim’. Verdadeiramente amar o ‘outro’ é tão difícil e violento como se propuséssemos amar o ‘ruim’ ou o imperfeito. O exorcismo, o ato de querer excluir e erradicar o ‘ruim’, significa verdadeiramente querer erradicar o ‘outro’. Como poderemos tolerar os outros e amá-los, se não toleramos em nós o que é ‘outro’, o que é fora de padrão e de expectativas? Não há identidade sem o outro, não há bom sem o ruim e não há bem sem o mal. Novamente retornamos ao mundo espiritual da ‘escuridão’, mundo de tensão e paradoxos. Qualquer tentativa que vise extirpar o ‘outro-ruim’ corre o risco de inventar um ‘bom’ monstruoso que seja desagradável, horrendo e destrutivo. Isso porque amar é o sentimento capaz de apreciar o diferente. Só poderemos integrar nosso ‘ruim’ a nós, se pudermos processá-lo pelo sentimento de amor. Ser ‘bom’, só é possível para quem realiza o trabalho espiritual de absorver seu Satan, seu próprio ruim, ou seu próprio outro. E ser bom nunca é para o outro, mas para si, e para todos. Essa é a condição única para que a bondade não seja instrumento de dominação. Conta-se uma parábola na qual um cantor, o melhor do reino, foi trazido para cantar e entreter o rei. Ao final, perguntaram ao rei se havia gostado e este disse que não, logo explicando: ‘Não gostei porque ele estava cantando para mim. Tivesse ele cantado para Deus, teria servido também para mim.’ A bondade não pode ser para o outro, deve ser para tudo e todos e aí serve também para o outro. A verdadeira inteligência espiritual teme as artimanhas da bondade com o mesmo terror e preocupação com os quais a ignorância espiritual teme o mal. Exorcizar nossa ‘bondade’ é parte do processo de dar espaço para a integração de nosso ‘ruim’.” Rabi Nilton Bonder, Senso de Bondade – Caminho à tolerância; Fronteiras da Inteligência.

Esse “saber quem sou” é condição primordial para que possamos viver bem uns com os outros. Nos relacionamentos fraternos – familiares – as desavenças, as brigas, as intolerâncias se dão exatamente por essa razão: NINGUÉM SABE QUEM É. Quando sei “quem sou”, você pode ser “quem é” ou quem desejar ser, que eu não “me” modificarei por sua causa, seguirei pacificamente meu caminho, sem entrar em guerra com você.


Pense nisso quando enfrentar seus problemas de relacionamento. Seja você.

Alexandre Rocha,
Itacoatiara, 11 de fevereiro de 2014.

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