"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

domingo, 9 de fevereiro de 2014

O OUTRO LADO, O LADO DE DENTRO É ONDE ESTÃO NOSSOS DEMÔNIOS



“Jesus e os alunos [discípulos] chegaram à outra margem do lago e foram ao território dos gerasenos. Assim que desembarcou, um homem com um espírito impuro saiu das grutas que serviam como sepulcros [e foi] ao seu encontro. Esse homem vivia naquele lugar, e ninguém conseguia prendê-lo, nem mesmo com correntes. Muitas vezes lhe haviam sido acorrentados pés e mãos, mas ele rompia as correntes e quebrava os ferros dos pés, e não havia ninguém suficientemente forte para controlá-lo. Noite e dia andava entre os sepulcros e nas colinas berrando e se ferindo com pedras.

Ao ver Jesus de longe, correu, prostrou-se diante dele e gritou o mais alto que pôde: ‘Que quer de mim, Jesus, Filho do Deus Superior? Imploro em nome de Deus! Não me torture!’. Porque Jesus lhe dissera: ‘Espírito impuro, saia deste homem!’. Então Jesus lhe perguntou: ‘Como você se chama?’. ‘Meu nome é Legião’, respondeu ele, ‘porque há muitos de nós’. E continuou implorando a Jesus que não lhes mandasse sair daquela região.

Uma grande quantidade de porcos estava se alimentando em uma colina próxima, e os espíritos impuros imploraram a Jesus: ‘Mande-nos para os porcos, a fim de podermos entrar neles’. Jesus lhes deu permissão. Eles saíram do homem e entraram nos porcos; cerca de dois mil porcos se atiraram colina abaixo, em direção ao lago, e nele se afogaram. Os que cuidavam dos porcos fugiram e contaram o fato na cidade e nos campos, e o povo foi ver o que havia acontecido. Eles se aproximaram de Jesus e viram ali o homem habitado por uma legião de demônios, assentado, vestido e em perfeito juízo; e ficaram atemorizados. As pessoas que viram o fato contaram o que acontecera ao homem controlado por demônios e aos porcos; as pessoas começaram a suplicar a Jesus que saísse de lá.

Quando Jesus estava entrando no barco, o homem que estivera endemoninhado implorou que o deixasse ir também. Mas Jesus não permitiu. Em vez disso, disse: ‘Vá até sua família e lhes diga quanto ADONAI, em sua misericórdia, fez por você’. Ele foi embora e começou a proclamar nas Dez Cidades o que Jesus tinha feito por ele. Todos ficaram admirados.” Marcos 5:1 a 18.

Continuando nosso estudo...

Jesus convidou aos alunos para “irem para o outro lado”. Esse “outro lado” é o lado de dentro de cada um. No meio dessa viagem, na travessia pelo mar de aprendizado que nos faz mudar os costumes, as perspectivas, os paradigmas, a mente se abala e a tempestade nos atinge fazendo com que pensemos em naufragar. Mas nossa inquietude é repreendida pela serenidade de Jesus que nos aquieta e acalma nos deixando tranquilos em relação a essa viagem ao centro de nós mesmos. Essa viagem ao íntimo de nós mesmos, não é uma constante experiência de calmaria e quietude. Ela irá nos revelar, nos fará ver quem somos realmente.

Como disse antes, não estou pondo em dúvida o que é relatado no evangelho, pretendo lançar “outra luz” sobre a leitura, uma luz menos assertiva, menos literal, menos religiosa, mas profundamente espiritual. Não quero nesse texto, tratar das questões históricas – farei isso em outra oportunidade –, quero me prender aos símbolos, aos signos que esse episódio carrega.

Escravo das próprias fantasias

O texto de Marcos descreve que tão logo o grupo de Jesus chegou ao outro lado do lago, um homem possuído por espírito impuro, que vivia em cavernas que serviam de sepulturas, saiu ao encontro dele gritando feito um desesperado. O texto ainda revela alguns fatos interessantes, que nos fazem pensar de forma um tanto diferente sobre o episódio narrado. Descreve o texto, que “ninguém podia prendê-lo”. O termo é “poder” e não “conseguir”. Isso é revelador, mostra o impedimento social e cultural, revela que aquele homem poderia ser uma espécie de “atração turística” do lugar, por isso não poderia ficar preso.

Outro ponto, mesmo quando o “prendiam” com correntes, ele as quebrava porque não havia ninguém suficientemente forte para controlá-lo. Situação que mostra a interação comunitária em manter o mito do superpoder daquele pobre coitado. Esse trabalho escravo de atração turística, não o deixava descansar. Possuído por seu papel sócio cultural, aquele homem nunca “descansava”, “dia e noite ele andava berrando e se ferindo com pedras”. Essa afirmação – demônio atração turística – ganha força no fim do texto, quando os habitantes do lugar solicitam que Jesus vá embora de lá.

Outro fato inusitado, que está presente no texto, mas que em se tratando de “domínio espiritual”, parece ser impossível de acontecer, é o pedido que o “possesso” faz a Jesus quando o vê. Ele implora em ...em nome de Deus!.

Que tipo de entidade maligna, invocaria misericórdia em nome do Deus Supremo – Há-Elyon? Honestamente não conheço nenhuma. Todas as entidades malignas são reprendidas em Nome de Deus, ou pelo Nome d’Ele. Vejo no relato do texto de Marcos, que aquele homem poderia ser um escravo de suas fantasias, e que o povo daquele lugar alimentava essas fantasias, e ganhava notoriedade com isso. Seu temor talvez se desse por ele saber que sofreria castigos – psíquicos, emocionais e até físicos – se Jesus acabasse com aquela farsa. Aquele ser – fosse ele humano ou “meio-humano” – conhecia a Jesus, porque “a fama” de Jesus se espalhara por todo canto. Pedir para que Jesus não o torturasse, revela a possibilidade de castigo, sofrida por aquele pobre coitado.

Mesmo não aprofundando nos fatos históricos, é preciso explicar. Aquela região – Gerasa – era uma região devastada pelas sucessivas guerras. Primeiro os Persas, depois os Gregos, depois os Romanos. Aquele homem cresceu vendo as legiões gregas e romanas passarem por cima de tudo que encontravam pelo caminho, para se estabelecerem como possuidoras do lugar. Na mente adoecida daquele homem, o único nome que ele poderia ter era “legião”, pois era a única forma de poder que ele conhecia desde sua infância. É assim que ele se chama, é assim que ele se identifica: Legião. Mas Jesus havia tratado – e dado ordens para que saísse dele – aquele estado de “espírito impuro”. Essa designação está mais para uma mente enferma e totalmente impura pelo que acredita ser, e fala que é aquilo que acredita, que propriamente uma identificação de “malignidade espiritual”. Espíritos impuros, são pensamentos impuros, sentimentos impuros, comportamentos impuros. Impureza é a falta de pureza, que por sua vez tem haver com o ser queimado, passado pelo fogo. O ser puro é aquele que passa pela fornalha da vida e sai do outro lado purificado. Esse fogo que purifica, queima o que é para ser queimado – madeira, palha e feno – mas não queima não quem realmente somos. (I Coríntios 3:11 a 14). Mas quem não entra na fornalha da vida e encara suas chamas que purificam, se torna impuro, não queimado, não santificado, um esquizofrênico. Passa a viver de suas fantasias, de seus ídolos, de seus falsos deuses, de suas manias construídas de madeira, feno e palha.

Aquele homem não havia passado pelo fogo que purifica. Parece não haver crescido, parece não haver entendido que “a guerra acabara”, ele ainda estava na infância ou na adolescência, vivendo uma fantasia “legionária”, uma fantasia espiritual fantástica. Estava fragmentado, destruído, esquizofrênico – e esquizofrenizado pelos familiares – servindo de atração turística. “...somos muitos” diz ele a Jesus. Somos muitos, a cidade toda, todo o povoado, toda a região – de Decápolis –, somos muitos. Uma verdadeira legião de gente adoecida.

O episódio dos porcos, tem um forte componente da literatura grega – mais que no restante do texto – , a tragédia. Algo de trágico deveria acontecer, aquela “legião” não poderia ser vencida tão facilmente, aqueles “demônios” não poderiam sair sem causar uma desgraça, “eles” não poderiam ser expulsos sem guerra, sem morte, sem desgraça, sem tragédia. Os únicos seres disponíveis para o sacrifício eram os porcos. Não duvido que aquele homem – apesar de não relatado no texto – tenha corrido berrando na direção das dezenas de porqueiros e de seus mais de dois mil porcos, fazendo com que eles entrassem na encenação empurrando seus animais para a água. No presente relato, existe um “Q” de xenofobia. O animal, o porco, representava tudo que era impuro, tudo que era desprezível para o judeu. A região de Gerasa – Guer-Nazareth – era composta possivelmente de prosélitos, de gentios que teriam se convertido ao judaísmo. Mas não estavam totalmente convertidos, pois ainda cuidavam de porcos. Judeus não são porqueiros, são pastores de ovelhas, mas aqueles gerasenos eram porqueiros prósperos. O componente épico e trágico se completa com na simbologia dos porcos – os não judeus – são lançados no mar como se fossem demônios em fuga. Esse episódio também mostra que aquele judeu prosélito, estava possuído por legiões de costumes e conceitos não judaicos. A “guerra” precisava acontecer, mesmo que fosse contra a personificação de quem a originou: os porcos.

Aterrorizados e não agradecidos, os habitantes daquele lugar pedem para que Jesus e seus alunos saíssem, se afastassem, os deixassem em paz. Quem em sã consciência, depois de receber uma libertação desse tamanho, não agradeceria ao libertador? A legião continuava ali, mas estava fora do homem. Ela continuava nos habitantes de Gerasa, nas famílias, nos amigos, nos vizinhos, na cultura daquele lugar. O legionário está livre, desalistado, da legião. Não faz mais parte dela e nem ela faz parte dele. Em sua tentativa de se afastar de quem o atormentara durante décadas, ele pede ao Senhor para fugir. Pedido negado.

Jesus nega o pedido do legionário, porque ainda lhe falta enfrentar as chamas que purificam. Jesus disse ao legionário: “‘Vá até sua família e lhes diga quanto ADONAI, em sua misericórdia, fez por você’. Ele foi embora e começou a proclamar nas Dez Cidades o que Jesus tinha feito por ele. Todos ficaram admirados.”. Enfrentar quem lhe havia feito um “endemoninhado” era a prova de fogo. Voltar para a família que havia lhe transformado em louco, lhe havia abandonado nas catacumbas, lhe havia acorrentado, lhe havia feito uma atração demoníaca era enfrentar as chamas que purificam. Mas ele fez isso, afinal de contas, ele era um soldado, um legionário, um guerreiro, um santo, um liberto. Ele havia atravessado seu mar turbulento com ondas gigantes e ventos uivantes, havia enfrentado seus demônios, os havia vencido e jogado seus corpos-porcos no mar.

... e nós?

A explicação – não ortodoxa – acima, pode até ser aceita por você, mas de nada se aproveitará se não for entendida e seus conceitos postos em prática.

Quando Jesus nos convida para irmos para o “outro lado”, o lado de dentro de nós, vamos invariavelmente passar por problemas sérios e graves. Ventos poderosos e ondas amedrontadoras são os guardiões do nosso self adoecido. Nosso ser endemoninhado está possuído por legiões de conceitos, manias, taras, fobias, religiões, políticas, moralidade exacerbada e adoecida, justicismo apocalíptico, revolta contra tudo e contra todos – até contra nós mesmos. Um quadro dantesco. Um quadro típico de uma possessão demoníaca digna de Hollywood. Uma tragédia, um desastre. Nossa vida, nossa fama. Nesse universo esquizofrenizado e esquizofrenizante, somos os “todos poderosos”, somos os possuidores do poder que esse estado adoecido nos proporciona. Por isso ventos tão fortes e ondas tão grandes. Quanto “mais demônios” mais vento; quanto “mais demônios” mais ondas.

Dar de cara com a calmaria que Jesus traz é assustador. Em certos momentos pedimos que Ele “nos deixe em paz”, por estarmos acostumados ao caos “demoníaco” que nossa vida se tornou e não queremos mudar. Nessa vida possuída, ODIAR É MELHOR, NÃO PERDOAR É MELHOR, FABRICAR E MANTER INIMIZADES E INIMIGOS É MELHOR, DESCONFIAR DE TUDO E DE TODOS É MELHOR, PROPORCIONAR DESCONFIANÇA É MELHOR, VIVER EM CEMITÉRIOS EMOCIONAIS É MELHOR, FICAR ACORRENTADO AO PASSADO É MELHOR, VIVER EM GUERRA COM DEUS E COM O MUNDO É MELHOR. AFINAL SOMOS UMA LEGIÃO!

Quantas vezes preferimos viver num estado adoecido, demoníaco, a nos libertar das legiões que nos aprisionam com correntes. Viajar para o outro lado, para o lado de dentro de nós mesmos, é dar de cara com nossos demônios, com nossa legião de “bichos horrendos” que nos assombram a alma e nos impedem de ser quem realmente somos.

Depois de expulsarmos nossos demônios e nos voltarmos com gestos e palavras de amor, na direção de quem nos endemoninhou, é hora de “voltar para o lado de fora”, é hora de encararmos a multidão novamente. Desta vez livres desse nosso eu-diabo, desse eu-satã. No retorno ao “outro lado do lago”, não há tempestade. TUDO ESTÁ CALMO.

Deus lhe abençoe.

Alexandre Rocha,
Itacoatiara, 9 de fevereiro de 2014.

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