"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

domingo, 16 de março de 2014

DIVIDIR PARA MULTIPLICAR



Em minha opinião o que mais atrapalha o entendimento do que está ESCRITO na Bíblia, são os “jeitinhos” dados pelos “estudiosos”. Um desses “jeitinhos”, é a introdução no corpo do texto, dos “intertítulos”; aqueles textinhos que titulam o assunto possivelmente contido no texto consequente. Essas divisões foram introduzidas no corpo do texto bíblico por Eusébio de Cesareia, um bispo de Cesareia, reconhecido como o “pai da história da Igreja”. Foi possivelmente esse bispo que dividiu os textos bíblicos em assuntos ou temas, dando-lhes um título. E é nesse momento que o leitor bíblico que desconhece tal fato, acha que, “tudo que está impresso é original”. O estudo de hoje, propõe uma leitura do que está escrito no texto, sem a influência da divisão eusebiana.

Vamos ao estudo...

"Os que haviam sido enviados se reuniram com Jesus e lhe contaram tudo o que tinham feito e ensinado. Havia muitas pessoas indo e vindo, a ponto de eles não terem tempo para comer. Então Jesus lhes disse: ‘Venham comigo para um lugar onde poderemos ficar sozinhos. Lá vocês descansarão um pouco’. Então eles se afastaram para um lugar à parte. Entretanto, muitas das pessoas que os viram sair, reconheceram-nos, correram a pé de todas as cidades e chegaram ao lugar antes deles. Quando Jesus saiu do barco e viu a grande multidão, começou a lhes ensinar muitas coisas, cheio de compaixão por eles, porque eram como ovelhas sem pastor.

Já era tarde. Os alunos – discípulos – se aproximaram dele e disseram: ‘Este é um lugar afastado, e está ficando tarde. Mande o povo embora para irem aos campos e povoados da vizinhança comprar algo para comer’. Mas ele lhes respondeu: ‘Vocês mesmos devem dar a eles algo para comer!’. Eles disseram: ‘Devemos ir e gastar muito dinheiro com pão e dá-lo para ser comido?’. Jesus lhes perguntou: ‘Quantos pães vocês têm? Vão e verifiquem’. Quando descobriram, disseram: ‘Cinco pães e dois peixes’. Ele ordenou a todos que se sentassem em grupos sobre a grama verde. Eles se sentaram em grupos de cinquenta e de cem. Jesus pegou os cinco pães e os dois peixes e, olhando em direção ao céu, disse um agradecimento ao Pai. A seguir, partiu-os pães e começou a dá-los aos alunos – discípulos – para serem distribuídos. Ele também dividiu os dois peixes entre todos. Todos comeram tanto quanto quiseram, e os alunos – discípulos – recolheram doze cestos cheios com pedaços de pães e peixes. O número de homens que comeram os pães era de cinco mil.” Marco 6:30 a 44.

Para mim está clara a falta de compreensão do texto acima. Não encontramos o termo “multiplicar”, nem alusão a algum tipo de prática multiplicadora. Encontramos o termo “repartir”chalaq – , que por sua vez tem sua raiz – segundo o dicionário Strong – no termo “Efraim”, que significa: “ser duplamente frutífero” ou “ser frutífero uma segunda vez”. Isso é revelador e muda toda a percepção do “milagre”.

Mas tudo se inicia, no alegre e empolgante retorno dos alunos, que procuram seu mestre, para lhes contar como foram bem-sucedidos em sua missão. Aparentemente alheios aos acontecimentos da morte de João Batista, eles queriam falar ao mestre, de seus sucessos, de suas vitórias, de seus milagres. O texto revela que muita gente estava com eles “a ponto de eles não terem tempo para comer”. Essa menção pode nos levar a entender que ELES ESTAVAM COM FOME. E Jesus os chama para longe da multidão, para que eles pudessem conversar e comer algo. Se isso for verdade, como creio que é, havia comida para eles comerem e Jesus queria que eles se alimentassem com tranquilidade.

Mas essa tranquilidade não foi “encontrada”, esse “lugar tranquilo”, não existiu. Ao contrário, as pessoas famintas do novo, com fome das palavras de Jesus, nunca os deixavam sossegados. O texto diz que o Mestre se compadeceu deles, mas os alunos – seguindo o que está no texto de Marcos – estão com fome e dizem ao Senhor que aquela multidão também estava com fome e que deveria ser mandada de volta para casa, para procurarem o que comer pelo caminho. Mas Jesus sente tanta compaixão daquelas pessoas, que os compara a “ovelhas sem pastor”.

Uma “ovelha sem pastor”, é um animal completamente desprotegido, sem ninguém para lhe providenciar comida. Basta lermos o Salmo 23, onde David compara-se a uma “ovelha com pastor”, e por isso, é cuidada, alimentada e protegida. Mas as relações entre esse episódio de fome e o Salmo 23, não ficam por aqui, elas seguem até o fim, até o “... preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários...”. Adversário é aquele que tenta impedir que “eu” chegue ao “meu” objetivo. O objetivo dos alunos de Jesus era COMER, era achar um lugar onde comer com seu mestre, encontrar um lugar tranquilo, distante de tanta gente, distante de tantos pedidos, longe da multidão. Então, “mandar embora”, “despachar”, “mandar pra longe”, “afugentar”, “despedir”, (...) era tudo que eles queriam que Jesus fizesse. Afinal de contas, aquelas pessoas – tão famintas quanto eles – estavam impedindo que eles comessem tranquilos.

Mas não é assim que Jesus faz. Ele diz aos famintos alunos “... dai-lhes vós de comer...”. Que ordem louca, que ordem mais insana. A resposta vem no tom: “... nós devemos gastar nosso dinheiro para comprar pão para dar para eles?”. Mas a ordem continua: “dai-lhes vós de comer!”. Jesus não pediu que eles “dessem” o que não possuíam, Ele disse para que seus alunos REPARTISSEMchalaq – uns com os outros, um pouco do que tinham para comer.

Esse episódio – pão como comida – me faz lembrar do episódio da “tentação de Jesus”, onde o adversário pede que Jesus transforme pedra em pão. Pão – lechem – , é alimento para ser dividido, comida para ser repartida. A resposta de Jesus é fantástica: “... não é só pão que alimenta o homem, ele – alimento – também provém da palavra – ordem – de Deus.”. E qual seria essa “palavra”? Com certeza não é a Bíblia, mas o que está contido nela. A ordem que ela contém, sua máxima instrução para o “alimento” do ser humano, é: “Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.” Marcos 12:30 e 31.

Amar ao próximo, cuidar do próximo, isso é amar a Deus. Naquele momento, “alimentar a multidão” era a maior expressão de amor que Jesus ordenava que seus alunos praticassem. Mesmo com fome, eles deveriam dividir o pouco de comida que possuíam uns com os outros e ensinar – na prática – a multidão. Mas eles não entenderam. Estavam com tanta fome que não puderam pensar em ninguém, só neles mesmos.

Mas Jesus intervém e continua o ensino perguntando: “... o que vocês têm para comer?”, e eles respondem sem titubear: “... cinco pães e dois peixes ...”. Estava de bom tamanho. Era só isso que Jesus precisava para ensinar CHALAQ – para todos eles. Agradecendo ao PAI, ao Todo Poderoso, que faz com que a chuva regue a plantação do justo e do ímpio, e o sol brilhe sobre os homens de coração bom tanto quanto brilha sobre os homens de coração mau, Jesus REPARTE a comida com seus alunos, eles uns com os outros, e todos da multidão uns com os outros.

É difícil aceitar o desmonte do “milagre da multiplicação”. Somos todos alunos de Eusébio de Cesaréia, não sabemos ler, fomos influenciados pela titulação errada de um homem bem intencionado que trocou “DIVIDIR” por “MULTIPLICAR”.

Crer na “multiplicação” dos pães é ser egoísta. A “multiplicação” é a tentativa humana de continuar de barriga cheia, pedindo a Deus que nos dê mais para podermos dar. Coisa que nunca acontece, porque quanto mais temos, mais queremos. Acreditar no “milagre da multiplicação” é viver a teologia da prosperidade, onde “o que é meu é meu e o que é teu é teu”. Viver o “milagre da multiplicação” é negar o amor ao próximo.

Esse amor, tão decantado e pregado por todos, como a máxima da vida com Deus, manifesta-se na verdade do MILAGRE DA DIVISÃO. Dividir é tirar do meu, é dar do que tenho, é partilhar o que possuo, é ajudar a quem não tem. ISSO É MILAGRE. Esse milagre não é externo, esse milagre é INTERNO, é ÍNTIMO, é MEU. Quando “você” se divide, é “você” quem vai como doação, quando “você” se divide, é “você” que se torna dádiva. Viver o MILAGRE DA DIVISÃO é praticar “o que é teu é teu, e o que é meu é teu”.

Defendo que Jesus não “multiplicou” mas, “dividiu”. Ensinou a dividir, dividindo. Ensinou a amar, amando. Ensinou, fazendo.

Depois que todos – que a multidão – dividiram o que tinham uns com os outros, sobram 12 cestos cheios de comida – pão e peixe. Se nos alimentamos uns aos outros, se cuidamos uns dos outros, se amamos uns aos outros, nos tornamos filhos de Deus.

Quando David recebe do seu Pastor a mesa farta – cheia de comida – , não é para o castigo “dos que não tem o que comer”, é para que ele – David, eu e você – reparta essa comida com os adversários. Só assim, “nosso cálice” de bondade transborda e o olhar misericordioso do ETERNO, nos seguirá, nos socorrerá, TODOS OS DIAS DA NOSSA VIDA. Só mora na Casa de DEUS, quem é capaz de alimentar, ajudar, cuidar, a todos que batem na porta da CASA DO SONHOR!

Essa é a verdade no texto, essa é a verdade dos fatos.

Pense nisso. Divida seu pão, seja ele qual for.

Deus lhe abençoe.

______
Observação: No texto de Marcos, o primeiro evangelho a ser escrito, não existe a figura do menino com seus “cinco pães e dois peixinhos”; essa descrição é encontrada no evangelho de João (João 6:1 a 14). Em Marcos Jesus pergunta aos seus alunos o que ELES teriam para comer.

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