Nasci dentro de um lar religioso. Meus pais sempre foram
ligados à religião, às doutrinas batistas mais especificamente. Cresci ouvindo
mama Ruth – de abençoada memória – dizer: “amar se aprende”. Cresci ouvindo
isso e tentei aprender durante toda a minha vida, mas acho que não consegui.
Não sei como aprender a amar, sei amar, mas não sei aprender como amar (...).
Vi dentro de casa fortunas de vida distribuídas em favor dos pobres de amor;
assisti o sacrifício pirotécnico do entregar o corpo para ser queimado por amor
ao amor que se queria amar. Nunca consegui chegar a esse nível de altruísmo
(...). Paulo diz no verso três de sua carta que nem os maiores sacrifícios em
prol de outras pessoas se aproveita como prova de amor.
“E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.” I Coríntios 13:3 (texto extraído da versão bíblica Almeida Corrigida e Fiel).
O maior de todos os atos de justiça – tzedakah –, abrir mão
da fortuna pessoal em favor de alguém necessitado não é ato de amor, é apenas
ato de misericórdia – misericórdia não é amor. Mesmo que em um ato de extremo
altruísmo, se morresse da pior maneira possível, afogado ou, como sugere o
texto, queimado – e ainda voluntariamente –, tal ato não seria amor, seria
somente um mero sacrifício; de nada se aproveitaria. Sendo um simples e reles
sacrifício para nada se aproveita, para nada presta, para nada serve. Tal ato
não se aproveita pois o ente que ama e se sacrifica deixa de existir para o ser
que lhe ama e que precisa de sua companhia, de sua existência. Amor queimado
vira cinzas e para nada presta. Dar tudo de si para os outros também não se aproveita
como ato de amor, já que descuidou de quem lhe está próximo, descuidou do seu
amor – por si e pelo ente amado. AMOR NÃO PRECISA SE SACRIFICAR, AMOR SÓ
PRECISA AMAR.
Tenho lido e meditado na sabedoria espiritual contida no
livro do Rabino Nilton Bonder, “A Alma Imoral”, nele o Rabino declara:
***
“Sacrificar para quê?
Perguntaram ao rabi Bunam: “O que quer dizer com a expressão
‘sacrificar para ídolos’? É impensável que
alguém realmente venha a fazer sacrifícios para
algo que entenda como um ídolo!” O rabino respondeu: “Vou lhe dar um exemplo.
Quando uma pessoa religiosa ou um justo se senta à mesa junto com outras
pessoas e tem o desejo de comer um pouco mais, mas se restringe por conta do
que os outros podem vir a pensar dele – isto é sacrificar
para ídolos!” (Buber, Late Masters, p. 256)
O ENSINAMENTO COMEÇA COM O questionamento da lógica da
expressão “sacrificar para ídolos”. Se percebemos
que são ídolos, ou seja, vazios e ilusórios e sem qualquer significado real,
como é possível fazer “sacrifícios para
ídolos”? A resposta do rabi Bunam é de que fazemos isso com mais frequência do
que imaginamos em situações em que acreditamos existir qualquer virtude ou
ganho possível por conta de condutas ou posturas que representem sacrifícios ao nada. E quantos de nossos esforços e sacrifícios são, na verdade, “oferendas” ao nada? Quem precisa de
nossas restrições ou de nossas abstinências? Por acaso D’us precisa de nossos
atos “morais” que visam a ocultar nossa nudez? Por acaso D’us não percebeu de
imediato que Adão havia comido da árvore justamente porque se vestiu e quis
ocultar sua nudez? Ao vestir-se, fez oferendas ao deus do nada ou ao deus de
seu animal moral.
É importante perceber que o deus do animal moral, do corpo,
nem sempre é um deus, com “minúscula”. Afinal
é de D’us: “Frutificai e multiplicai.” Mas toda
atenção é pouca, porque muitas coisas são feitas ou muitas deixam de ser feitas
por sacrifícios ao nada. Quantas pessoas poderíamos
ter tirado “para dançar” na vida e não o fizemos
por ofertar sacrifícios ao nada? Sacrifício ao deus da timidez, ao deus da vergonha, ao deus do medo
de ser rechaçado e assim por diante.
Quantas vezes deveríamos ter dito não, em vez de nos
desgastarmos para dissimular virtudes que são oferendas idólatras: oferendas ao
deus expectativa, ao deus cobrança, ao deus culpa e assim por diante.
Não podemos temer o que outros irão dizer ou pensar. Não
devemos temer nossa própria autoimagem, esta sim, um altar de primeira grandeza
aos sacrifícios idólatras. Quantas oportunidades
não deixamos de aproveitar, pois “não era conveniente” fazer isto ou aquilo?
Nossa autoimagem, tal como nossa moral, é um instrumento do corpo que não
aceita se ver em “outro” corpo.
O rabi Bunam alerta para o cuidado que se deve ter com
abstinências e privações, pois, muito mais que demonstrar respeito à vida, elas
cultuam deuses menores. O corpo é o responsável por uma intrincada rede de
negociações psíquicas para que possamos nos preservar tal como somos. No
entanto, fizeram com que acreditássemos que ele nos
tenta constantemente com seus desejos. É a alma que fica inconformada com os
sacrifícios vazios do corpo e é ela a responsável pelos atrevimentos, ousadias,
riscos e transgressões.”
***
Tal sabedoria espiritual pode ser profunda demais para
entendermos, e é por isso que o texto do rabino precisa de meditação. Amar é
não sacrificar ao animal moral e moralista; amar não mata, nem morre por amor;
amar simplesmente ama, sem nada querer saber, sem nada sacrificar, sem nada
para provar.
Ouvi à alguma semanas atrás uma belíssima música que diz
assim: “... venha sem pressa, sem nada, não faça nada para impressionar
ninguém, ninguém; ouça o silêncio que deixa a alma livre pra poder cantar e
amar e só...”. Simples assim, sem sacrifício, sem corpos queimados – a não ser
pelas chamas do desejo –, sem doações extenuantes e confusas. Alma livre para
cantar e amar, sem tentar impressionar ninguém. Nem o ente amado.
Sacrificar-se ao seu animal moral, por amor ao ídolo vazio,
de nada se aproveita. Se amar tem de ser como está, que seja. Que se ame assim,
e só.
Nele, que já se sacrificou por amor.
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