"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

REFLEXÕES SOBRE O AMOR – parte III

Nasci dentro de um lar religioso. Meus pais sempre foram ligados à religião, às doutrinas batistas mais especificamente. Cresci ouvindo mama Ruth – de abençoada memória – dizer: “amar se aprende”. Cresci ouvindo isso e tentei aprender durante toda a minha vida, mas acho que não consegui. Não sei como aprender a amar, sei amar, mas não sei aprender como amar (...). Vi dentro de casa fortunas de vida distribuídas em favor dos pobres de amor; assisti o sacrifício pirotécnico do entregar o corpo para ser queimado por amor ao amor que se queria amar. Nunca consegui chegar a esse nível de altruísmo (...). Paulo diz no verso três de sua carta que nem os maiores sacrifícios em prol de outras pessoas se aproveita como prova de amor.

“E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.” I Coríntios 13:3 (texto extraído da versão bíblica Almeida Corrigida e Fiel).

O maior de todos os atos de justiça – tzedakah –, abrir mão da fortuna pessoal em favor de alguém necessitado não é ato de amor, é apenas ato de misericórdia – misericórdia não é amor. Mesmo que em um ato de extremo altruísmo, se morresse da pior maneira possível, afogado ou, como sugere o texto, queimado – e ainda voluntariamente –, tal ato não seria amor, seria somente um mero sacrifício; de nada se aproveitaria. Sendo um simples e reles sacrifício para nada se aproveita, para nada presta, para nada serve. Tal ato não se aproveita pois o ente que ama e se sacrifica deixa de existir para o ser que lhe ama e que precisa de sua companhia, de sua existência. Amor queimado vira cinzas e para nada presta. Dar tudo de si para os outros também não se aproveita como ato de amor, já que descuidou de quem lhe está próximo, descuidou do seu amor – por si e pelo ente amado. AMOR NÃO PRECISA SE SACRIFICAR, AMOR SÓ PRECISA AMAR.

Tenho lido e meditado na sabedoria espiritual contida no livro do Rabino Nilton Bonder, “A Alma Imoral”, nele o Rabino declara:

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“Sacrificar para quê?

Perguntaram ao rabi Bunam: “O que quer dizer com a expressão ‘sacrificar para ídolos’? É impensável que alguém realmente venha a fazer sacrifícios para algo que entenda como um ídolo!” O rabino respondeu: “Vou lhe dar um exemplo. Quando uma pessoa religiosa ou um justo se senta à mesa junto com outras pessoas e tem o desejo de comer um pouco mais, mas se restringe por conta do que os outros podem vir a pensar dele – isto é sacrificar para ídolos!” (Buber, Late Masters, p. 256)
O ENSINAMENTO COMEÇA COM O questionamento da lógica da expressão “sacrificar para ídolos”. Se percebemos que são ídolos, ou seja, vazios e ilusórios e sem qualquer significado real, como é possível fazer “sacrifícios para ídolos”? A resposta do rabi Bunam é de que fazemos isso com mais frequência do que imaginamos em situações em que acreditamos existir qualquer virtude ou ganho possível por conta de condutas ou posturas que representem sacrifícios ao nada. E quantos de nossos esforços e sacrifícios são, na verdade, “oferendas” ao nada? Quem precisa de nossas restrições ou de nossas abstinências? Por acaso D’us precisa de nossos atos “morais” que visam a ocultar nossa nudez? Por acaso D’us não percebeu de imediato que Adão havia comido da árvore justamente porque se vestiu e quis ocultar sua nudez? Ao vestir-se, fez oferendas ao deus do nada ou ao deus de seu animal moral.

É importante perceber que o deus do animal moral, do corpo, nem sempre é um deus, com “minúscula”. Afinal é de D’us: “Frutificai e multiplicai.” Mas toda atenção é pouca, porque muitas coisas são feitas ou muitas deixam de ser feitas por sacrifícios ao nada. Quantas pessoas poderíamos ter tirado “para dançar” na vida e não o fizemos por ofertar sacrifícios ao nada? Sacrifício ao deus da timidez, ao deus da vergonha, ao deus do medo de ser rechaçado e assim por diante.

Quantas vezes deveríamos ter dito não, em vez de nos desgastarmos para dissimular virtudes que são oferendas idólatras: oferendas ao deus expectativa, ao deus cobrança, ao deus culpa e assim por diante.

Não podemos temer o que outros irão dizer ou pensar. Não devemos temer nossa própria autoimagem, esta sim, um altar de primeira grandeza aos sacrifícios idólatras. Quantas oportunidades não deixamos de aproveitar, pois “não era conveniente” fazer isto ou aquilo? Nossa autoimagem, tal como nossa moral, é um instrumento do corpo que não aceita se ver em “outro” corpo.

O rabi Bunam alerta para o cuidado que se deve ter com abstinências e privações, pois, muito mais que demonstrar respeito à vida, elas cultuam deuses menores. O corpo é o responsável por uma intrincada rede de negociações psíquicas para que possamos nos preservar tal como somos. No entanto, fizeram com que acreditássemos que ele nos tenta constantemente com seus desejos. É a alma que fica inconformada com os sacrifícios vazios do corpo e é ela a responsável pelos atrevimentos, ousadias, riscos e transgressões.”
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Tal sabedoria espiritual pode ser profunda demais para entendermos, e é por isso que o texto do rabino precisa de meditação. Amar é não sacrificar ao animal moral e moralista; amar não mata, nem morre por amor; amar simplesmente ama, sem nada querer saber, sem nada sacrificar, sem nada para provar.

Ouvi à alguma semanas atrás uma belíssima música que diz assim: “... venha sem pressa, sem nada, não faça nada para impressionar ninguém, ninguém; ouça o silêncio que deixa a alma livre pra poder cantar e amar e só...”. Simples assim, sem sacrifício, sem corpos queimados – a não ser pelas chamas do desejo –, sem doações extenuantes e confusas. Alma livre para cantar e amar, sem tentar impressionar ninguém. Nem o ente amado.

Sacrificar-se ao seu animal moral, por amor ao ídolo vazio, de nada se aproveita. Se amar tem de ser como está, que seja. Que se ame assim, e só.


Nele, que já se sacrificou por amor.

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