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Vou tocar em um dos tabus da educação: desistir de alunos problema. Isso é um absurdo, eu diria a alguns anos. Antes de ser ordenado ao ministério pastoral, eu dizia a mesma coisa, “é um absurdo um pastor desistir de uma ovelha”. Depois, no pastorado aprendi algo que mudou minha relação com “minhas ovelhas”, e agora, como professor do Ensino Fundamental, com “meus alunos”. Eu aprendi a desistir.
Você pode estar sentindo raiva ou
indignação por estar lendo essa minha afirmação. Uma amiga me disse: “...eu
poderia ouvir isso de todos, menos de você...”. Mas é assim. Eu desisto das
pessoas. Porém quero apresentar meus motivos para esse comportamento que é
aparentemente desumano ou irresponsável, antiético, sei lá...
Desistir faz parte do caminho rumo
ao objetivo, o problema é que muitas vezes não sabemos qual é o objetivo a ser
conquistado; sequer sabemos onde queremos chegar; sequer sabemos o que queremos
para nossos filhos, para nossos alunos, para nossas relações interpessoais.
Spencer Johnson escreveu em seu livro “Quem Mexeu no meu Queijo”:
“A vida não
é um corredor reto e tranquilo que nós percorremos livres e sem empecilhos, mas
um labirinto de passagens, pelas quais nós devemos procurar nosso caminho,
perdidos e confusos, de vez em quando presos em um beco sem saída.”
Spencer
Johnson, Quem mexeu no meu queijo, p.9, Prefácio de A.J.Cronin
Às vezes me sinto assim, como se
estivesse preso “em um beco sem saída”, não apenas como professor – tenho
menos de dois anos de magistério – mas também como pastor, como pai, como
marido, como pessoa que busca conquistar objetivos. Às vezes me irrito ao ouvir
a mesma ladainha: “...calma, é assim mesmo!” ou “...ainda não viu
nada!” e frases do gênero. Perdoem-me eu não vivo dessa forma, me
acostumando aos problemas, levando-os na cacunda, tratando-os como bichinhos de
estimação. Problemas para mim precisam ser eliminado e ponto.
Sei que estou vivendo as
inquietações preliminares da carreira de professor; alguns alunos
indisciplinados protegidos por um sistema burro que alimenta seus
comportamentos delinquentes; outros alunos relapsos protegidos por pais mais
relapsos ainda; outros ainda enfermos de alma, adoecidos pelo – já – constante consumo
de álcool, drogas e “roque em rol”; como se não bastasse ter que me
deparar com cada um desses comportamentos nocivos, ainda tenho de enfrenta-los
todos de uma só vez em uma sala superlotada.
PROFESSORES NÃO SÃO BABÁS
Se você é um professor há de
concordar comigo, nós realmente não somos babás de alunos, nem dos bons e nem
dos maus. Somos professores, a maioria de nós prepara as aulas com espero,
gastamos tempo corrigindo trabalhos, elaborando provas e corrigindo-as, esse é
nosso ministério. Conheço professores que mantém um rígido controle do
aproveitamento de seus alunos em planilhas, diários, anotações e outros
expedientes. Mas por vezes, e não são poucas, nossos entusiasmo cai por terra
diante do “muro intransponível” do mau comportamento de alguns alunos.
Sendo por natureza um profissional
que trabalha focado em objetivos começo a me perguntar: VALE A PENA INSISTIR
NESSES ALUNOS?! Hoje, minha resposta é NÃO!! Não vale a pena perder tempo
com esses alunos.
E porque não vale a pena perder
tempo?! PORQUE EU NÃO POSSO SALVAR TODO MUNDO!! Só são salvos aqueles que
querem ser salvos. Nós professores, só salvaremos os alunos que desejarem ser
salvos de seu estado de ignorância. Sei que essa discussão pode ganhar linhas
mais graves e mergulhos mais profundos, passando por temas transversais e as
vezes alheios à sala de aula; Ótimo!
Não podemos mais ficar reclamando
no dia do planejamento, ou nos alarmar quando um aluno é preso traficando
drogas – fora da escola; mas quem garante que ele já não traficava dentro da
escola? Claro que traficava, claro que outros alunos eram e são seus “clientes”.
Não quero mais me assustar quando souber de escolas assaltadas pelos próprios
alunos, quando souber de escolas que sofreram com o vandalismo próprio dos sociopatas;
não quero mais me entristecer com a maldade de determinados alunos que em
momentos de sandice viram o prato de comida na mesa do refeitório como se
fossem os donos do mundo. Quando eu era aluno, teria levado umas boas palmadas
da supervisora e uma surra quando chegasse em casa.
Já disse em um texto que as
escolas públicas estaduais e municipais estão desprovidas de profissionais e
ferramentas adequadas para esse enfrentamento. E mesmo que tivéssemos,
profissionais e ferramentas, ainda assim, seria preciso desistir de insistir
com alguns alunos.
SÃO ELES QUEM DECIDEM
No tratamento de drogaditos a
liberdade é fator primordial para a recuperação. Se o viciado não quiser deixar
as drogas, não deixará; se decidir deixa-las, há um corpo de profissionais,
ferramentas e ambientes apropriados para ajuda-lo, mas todo o trabalho é dele. Creio
que com os alunos deve ser assim também. Nós somos os facilitadores do aprendizado,
eles é que precisam fazer o esforço para aprender. Mas o que tem acontecido é
que nós temos nos tornado “neurocirurgiões” do ensino, praticamente
pedimos “pelo amor de Deus” que eles escutem o que temos à dizer em
sala, temos que “implorar” para ficarem em silêncio enquanto fazemos a
chamada; depois disso entramos em rota de colisão com eles quando começamos a explanar
a matéria propriamente dita – ainda bem, que essa agonia não passa dos 45
minutos, em média.
Égua, isso parece roteiro de
filme de terror!
Mas não reclamo, acho excitante
enfrentar o desafio de “abrir a porta” da mente dessas crianças – das interessadas,
e semear novos conceitos, fomentar em seus sentimentos novos desafios,
apresentar-lhes um novo horizonte. Minha questão é com aqueles que atrapalham
todo o processo de aprendizado dos demais. Em uma turma de 48, oito estão “frutas
podres”. Não estou sendo cruel ao afirmar que estão “frutas podres”,
é como estão! Não estou dizendo que sejam uns “perdidos para sempre”,
não! Mas no momento presente estão “podres”, são um empecilho para o aprendizado
dos demais alunos, esses oito consomem nossas energias, mais que os demais 40
restantes. É duro dizer isso, mas é necessário. Sei que você que é professor
concorda comigo.
Nós não temos como resolver esse
problema, não há como mudarmos o comportamentos desses alunos, não existe
nenhum mecanismo externo a eles que seja capaz de fazer com que mudem. Só eles
mesmos podem mudar; só eles são capazes de se transformar. Mas, infelizmente a
maioria não quer. Aí vem a pergunta que nunca cala: O QUE FAZER COM ELES?! Continuar
insistindo, crendo no axioma “água mole em pedra dura, tanto bate até que
fura”? Ou ser pragmático, desistir desses e investir tempo, esforço,
intelecto e recursos naqueles que irão mudar o futuro?
Eu fico com a segunda opção. Eu
desisto daqueles que não querem ser ajudados para focar meus esforços naqueles
que querem escrever uma história diferente.
Conjecturo que você pode estar
questionando minha qualidade enquanto pastor – e professor – ao ler essa
afirmação. Sinto muito.
Para minhas turmas de 9º ano,
tenho trabalhado a questão da temporalidade sagrada, de forma não convencional.
O tradicional da temporalidade sagrada prende-se aos rituais festivos e religiosos,
onde o tempo sagrado se estabelece pela obediência aos diversos calendários
religiosos. Tenho ensinado aos alunos que o Tempo Sagrado é na verdade o tempo
que se move, que evolui, que avança, que muda, que não para. Tenho provocado
neles a mudança de paradigma, tenho estimulado o “nascer de novo”, quero
que eles tenham coragem de tornarem-se sagrados acompanhando o tempo que é
sagrado por continuar modificando-se. Sagrado é mudar-se, é evoluir-se, é
modificar-se, é reinventar-se.
Evoco novamente Spencer Johnson e
seus ratinhos:
“As velhas
crenças não o levam ao novo queijo.”
Spencer
Johnson, Quem mexeu no meu queijo, p.67
Então o que devemos fazer com
aqueles alunos – a minoria dentro do todo – que não quer nada-com-nada? Qual deve
ser nossa atitude para com esses alunos que nos têm esgotado as forças e por
vezes nos desestimulados e, em casos mais graves nos transformados em
profissionais ranzinzas, escuros, alheios as desgraças (...)? Tentando iluminar
as mentes, chamo para o “baile”, Seth Godin e seu livro “O melhor do mundo”.
“É mais
fácil ser medíocre do que enfrentar a realidade e desistir.
Desistir é
difícil. Desistir exige que você reconheça que jamais será o número 1. Pelo menos
não na sua área de atuação. Então é muito mais fácil continuar, não admitir
suas limitações e aceitar a mediocridade.
Que desperdício.”
Seth
Godin, O melhor do Mundo, pg.38
NÃO DESISTIR REVELA UM
POSSÍVEL COMPLEXO DE MESSIAS
A psicóloga Raquel Baldo – CRP
79518/SP – define o complexo de messias da seguinte forma:
“...trata-se
de um estado psicológico onde a pessoa acredita que é ou será uma figura de
extrema importância para o meio que vive ou mesmo para o mundo. É também muito
comum se nomearem salvadores, pois sentem que são indivíduos enviados ou
escolhidos por uma força maior ou por Deus para uma ou mais missões para com o
mundo. E pelo fato de que no geral suas missões carregam uma forte
característica religiosa, é muito comum que estas pessoas encontrem conforto
nas ideias, reforço nas atitudes e até apoio ou seguidores nos meios que vivem
mais intensamente uma religião, seja ela qual for. Mas vale ressaltar logo de
início que este complexo não está relacionado ou mesmo é causado pela
religiosidade ou por uma religião.”
Resolvi reproduzir a definição de
Raquel sobre essa síndrome, por entender que a maioria de nós, professores,
sofre dela em relação aos alunos problema. Via de regra, não queremos desistir
deles, mesmo adoecendo por causa deles, pois achamos que insistindo na
tentativa de recupera-los estaremos agindo como salvadores de suas vidas – e também
do nosso ofício; mas na verdade, esse comportamento “salvador” mostra o
quanto a angustia de não conseguirmos dar “uma aula que preste” pela
presença desses alunos em sala já nos afetou. Agimos como em um “cabo-de-guerra”,
eles puxam para um lado e nós puxamos para o outro; eles gritam que desistiram
de si mesmo e nós dizemos que não desistiremos deles. Que doidice.
Se você for um religiosos,
imagino que possa estar passando por sua cabeça a parábola da “ovelha perdida”,
contado por Jesus a um grupo de religiosos racistas e preconceituosos. O episódio
está registrado no Evangelho de Lucas:
“E chegavam-se
a ele todos os publicanos e pecadores para o ouvir. E os fariseus e os escribas
murmuravam, dizendo: Este recebe pecadores, e come com eles. E ele lhes propôs
esta parábola, dizendo:
Que homem
dentre vós, tendo cem ovelhas, e perdendo uma delas, não deixa no deserto as
noventa e nove, e não vai após a perdida até que venha a achá-la? E achando-a,
a põe sobre os seus ombros, gostoso; e, chegando a casa, convoca os amigos e
vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque já achei a minha ovelha
perdida.
Digo-vos
que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que
por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.”
Lucas
15:1ss
Se você não souber ler, vai achar
– acredito que pensa assim – que Jesus disse para nunca desistirmos dos “desgarrados”,
mas o Messias nunca disse isso. Ele revelou o comportamento preconceituoso e
sectário dos religiosos, com uma fábula. Observe que Jesus identifica-os usando
“que homem dentre vós”, ou seja, “qual de você”; e mais, o mestre
faz uma provocação em seguida. Ele questiona a capacidade de arrependimento dos
religiosos. Na fábula contada por Jesus, o “pastor”, só parte em busca
da “ovelha desgarrada”, depois que as demais estavam em lugar seguro;
porém esse relato é apenas uma fábula, a moral da historieta contada por Jesus
é que os religiosos, que também estavam representados pela “ovelha perdida”,
precisavam de arrependimento, caso não se arrependessem de seu comportamento
sectário, comparavam-se às 99 ovelhas que não precisavam de arrependimento.
Mesmo entendendo que o possível argumento
bíblico levantado por você para insistir na recuperação dos alunos problema
mostra a manifestação do complexo de messias, resolvi usá-lo para demostrar o
erro na interpretação do texto. Perceba que o fato principal da fábula está
centrado do arrependimento do infrator. Aplicando à realidade apresentada, o
possível arrependimento do aluno problema e seu retorno ao convívio construtivo
da escola, será recebido com “alegria no céu” por todo o corpo docente
da Escola.
Ainda no viés bíblico, devo mencionar
que Jesus nunca insistiu em nenhum de seus seguidores. Lembremos de Judas que
mesmo convivendo por três anos com o Mestre, era um “aluno problema”, tão
problema que não aprendeu nenhuma aula. O resultado prático desse fato, todos
já conhecem.
Outro fato interessante ocorreu
anos antes, na cidade em que Jesus morava, Cafarnaum. Voltando para sua casa,
sua cidade, sua família, poucas pessoas creram em seu ensino e menos ainda foram
curadas de suas enfermidades (Marcos 6:4 a 6). No texto de Marcos, depois de
ver a incredulidade das pessoas, Jesus não insistiu com elas, desistiu delas e
seguiu para outra cidade. Devo lembrar, que algumas daquelas pessoas que foram “abandonadas”
por Jesus, faziam parte de sua família.
ELES SÃO OS DONOS DO
TERRITÓRIO
Uma das situações que percebo no
trato com esses alunos problema, é que eles nos chamam para o “território”
deles. Nele, eles são os reis, o centro das atenções, tudo gira em torno deles;
seu poder sobre o sistema escolar é tanto, que tudo para por causa deles, todos
olham para suas loucuras, alguns até admiram suas bravatas. Nós, assistimos tudo
amarrados e amordaçados por uma legislação que protege delinquentes. Desistir
desses sociopatas infantis é necessário. Mas como?
Não sei. Mas é necessário.
Quando confrontamos um aluno
problema, ele não nos segue, nós o seguimos; ele não vai até nosso “território”,
nós é que vamos ao “território” dele e lá, ele é quem manda. Onde é esse “território”?
Em sua mente, em seu universo, em seus argumentos. Eles nunca aceitam nossos
argumentos, nunca entram em nosso universo, nunca entendem o que falamos. Fazem
pouco de nós e das nossas tentativas em recupera-los.
Precisamos limpar as escolas
dessas pessoas nocivas ao convívio sócio educativo, precisamos ter a coragem de
desistir; mesmo que criemos um lugar para sejam tratados de forma diferenciada –
porque são diferentes –, por pessoas preparadas. Desistimos deles no convívio
geral e insistimos de outra forma (...), será que daria certo? Não sei.
Temos que ter a coragem de
desistir e mais ainda, deixar isso claro a eles, sem agredi-los com palavras;
eles precisam saber que desistimos.
Termino esta reflexão com uma
frase do mestre Saramago:
“Aprendi a
não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito,
é uma tentativa de colonização do outro.”
José
Saramago
Então, que sigam seu caminho, que eu sigo o meu. Não
tentarei convencê-los de nada, não tentarei coloniza-los de nada. Acho que será
assim.
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