"Sempre fomos livres nas profundezas de nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres.
Fomos escravos no mundo externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito."
Maharal de Praga (1525-1609)

terça-feira, 14 de março de 2017

ALUNOS: DESISTIR DE ALGUNS É PRECISO.

Imagem WEB

Vou tocar em um dos tabus da educação: desistir de alunos problema. Isso é um absurdo, eu diria a alguns anos. Antes de ser ordenado ao ministério pastoral, eu dizia a mesma coisa, “é um absurdo um pastor desistir de uma ovelha”. Depois, no pastorado aprendi algo que mudou minha relação com “minhas ovelhas”, e agora, como professor do Ensino Fundamental, com “meus alunos”. Eu aprendi a desistir.

Você pode estar sentindo raiva ou indignação por estar lendo essa minha afirmação. Uma amiga me disse: “...eu poderia ouvir isso de todos, menos de você...”. Mas é assim. Eu desisto das pessoas. Porém quero apresentar meus motivos para esse comportamento que é aparentemente desumano ou irresponsável, antiético, sei lá...

Desistir faz parte do caminho rumo ao objetivo, o problema é que muitas vezes não sabemos qual é o objetivo a ser conquistado; sequer sabemos onde queremos chegar; sequer sabemos o que queremos para nossos filhos, para nossos alunos, para nossas relações interpessoais. Spencer Johnson escreveu em seu livro “Quem Mexeu no meu Queijo”:

“A vida não é um corredor reto e tranquilo que nós percorremos livres e sem empecilhos, mas um labirinto de passagens, pelas quais nós devemos procurar nosso caminho, perdidos e confusos, de vez em quando presos em um beco sem saída.”
Spencer Johnson, Quem mexeu no meu queijo, p.9, Prefácio de A.J.Cronin

Às vezes me sinto assim, como se estivesse preso “em um beco sem saída”, não apenas como professor – tenho menos de dois anos de magistério – mas também como pastor, como pai, como marido, como pessoa que busca conquistar objetivos. Às vezes me irrito ao ouvir a mesma ladainha: “...calma, é assim mesmo!” ou “...ainda não viu nada!” e frases do gênero. Perdoem-me eu não vivo dessa forma, me acostumando aos problemas, levando-os na cacunda, tratando-os como bichinhos de estimação. Problemas para mim precisam ser eliminado e ponto.

Sei que estou vivendo as inquietações preliminares da carreira de professor; alguns alunos indisciplinados protegidos por um sistema burro que alimenta seus comportamentos delinquentes; outros alunos relapsos protegidos por pais mais relapsos ainda; outros ainda enfermos de alma, adoecidos pelo – já – constante consumo de álcool, drogas e “roque em rol”; como se não bastasse ter que me deparar com cada um desses comportamentos nocivos, ainda tenho de enfrenta-los todos de uma só vez em uma sala superlotada.

PROFESSORES NÃO SÃO BABÁS

Se você é um professor há de concordar comigo, nós realmente não somos babás de alunos, nem dos bons e nem dos maus. Somos professores, a maioria de nós prepara as aulas com espero, gastamos tempo corrigindo trabalhos, elaborando provas e corrigindo-as, esse é nosso ministério. Conheço professores que mantém um rígido controle do aproveitamento de seus alunos em planilhas, diários, anotações e outros expedientes. Mas por vezes, e não são poucas, nossos entusiasmo cai por terra diante do “muro intransponível” do mau comportamento de alguns alunos.

Sendo por natureza um profissional que trabalha focado em objetivos começo a me perguntar: VALE A PENA INSISTIR NESSES ALUNOS?! Hoje, minha resposta é NÃO!! Não vale a pena perder tempo com esses alunos.

E porque não vale a pena perder tempo?! PORQUE EU NÃO POSSO SALVAR TODO MUNDO!! Só são salvos aqueles que querem ser salvos. Nós professores, só salvaremos os alunos que desejarem ser salvos de seu estado de ignorância. Sei que essa discussão pode ganhar linhas mais graves e mergulhos mais profundos, passando por temas transversais e as vezes alheios à sala de aula; Ótimo!

Não podemos mais ficar reclamando no dia do planejamento, ou nos alarmar quando um aluno é preso traficando drogas – fora da escola; mas quem garante que ele já não traficava dentro da escola? Claro que traficava, claro que outros alunos eram e são seus “clientes”. Não quero mais me assustar quando souber de escolas assaltadas pelos próprios alunos, quando souber de escolas que sofreram com o vandalismo próprio dos sociopatas; não quero mais me entristecer com a maldade de determinados alunos que em momentos de sandice viram o prato de comida na mesa do refeitório como se fossem os donos do mundo. Quando eu era aluno, teria levado umas boas palmadas da supervisora e uma surra quando chegasse em casa.

Já disse em um texto que as escolas públicas estaduais e municipais estão desprovidas de profissionais e ferramentas adequadas para esse enfrentamento. E mesmo que tivéssemos, profissionais e ferramentas, ainda assim, seria preciso desistir de insistir com alguns alunos.

SÃO ELES QUEM DECIDEM

No tratamento de drogaditos a liberdade é fator primordial para a recuperação. Se o viciado não quiser deixar as drogas, não deixará; se decidir deixa-las, há um corpo de profissionais, ferramentas e ambientes apropriados para ajuda-lo, mas todo o trabalho é dele. Creio que com os alunos deve ser assim também. Nós somos os facilitadores do aprendizado, eles é que precisam fazer o esforço para aprender. Mas o que tem acontecido é que nós temos nos tornado “neurocirurgiões” do ensino, praticamente pedimos “pelo amor de Deus” que eles escutem o que temos à dizer em sala, temos que “implorar” para ficarem em silêncio enquanto fazemos a chamada; depois disso entramos em rota de colisão com eles quando começamos a explanar a matéria propriamente dita – ainda bem, que essa agonia não passa dos 45 minutos, em média.

Égua, isso parece roteiro de filme de terror!

Mas não reclamo, acho excitante enfrentar o desafio de “abrir a porta” da mente dessas crianças – das interessadas, e semear novos conceitos, fomentar em seus sentimentos novos desafios, apresentar-lhes um novo horizonte. Minha questão é com aqueles que atrapalham todo o processo de aprendizado dos demais. Em uma turma de 48, oito estão “frutas podres”. Não estou sendo cruel ao afirmar que estão “frutas podres”, é como estão! Não estou dizendo que sejam uns “perdidos para sempre”, não! Mas no momento presente estão “podres”, são um empecilho para o aprendizado dos demais alunos, esses oito consomem nossas energias, mais que os demais 40 restantes. É duro dizer isso, mas é necessário. Sei que você que é professor concorda comigo.

Nós não temos como resolver esse problema, não há como mudarmos o comportamentos desses alunos, não existe nenhum mecanismo externo a eles que seja capaz de fazer com que mudem. Só eles mesmos podem mudar; só eles são capazes de se transformar. Mas, infelizmente a maioria não quer. Aí vem a pergunta que nunca cala: O QUE FAZER COM ELES?! Continuar insistindo, crendo no axioma “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”? Ou ser pragmático, desistir desses e investir tempo, esforço, intelecto e recursos naqueles que irão mudar o futuro?

Eu fico com a segunda opção. Eu desisto daqueles que não querem ser ajudados para focar meus esforços naqueles que querem escrever uma história diferente.

Conjecturo que você pode estar questionando minha qualidade enquanto pastor – e professor – ao ler essa afirmação. Sinto muito.

Para minhas turmas de 9º ano, tenho trabalhado a questão da temporalidade sagrada, de forma não convencional. O tradicional da temporalidade sagrada prende-se aos rituais festivos e religiosos, onde o tempo sagrado se estabelece pela obediência aos diversos calendários religiosos. Tenho ensinado aos alunos que o Tempo Sagrado é na verdade o tempo que se move, que evolui, que avança, que muda, que não para. Tenho provocado neles a mudança de paradigma, tenho estimulado o “nascer de novo”, quero que eles tenham coragem de tornarem-se sagrados acompanhando o tempo que é sagrado por continuar modificando-se. Sagrado é mudar-se, é evoluir-se, é modificar-se, é reinventar-se.

Evoco novamente Spencer Johnson e seus ratinhos:

“As velhas crenças não o levam ao novo queijo.”
Spencer Johnson, Quem mexeu no meu queijo, p.67

Então o que devemos fazer com aqueles alunos – a minoria dentro do todo – que não quer nada-com-nada? Qual deve ser nossa atitude para com esses alunos que nos têm esgotado as forças e por vezes nos desestimulados e, em casos mais graves nos transformados em profissionais ranzinzas, escuros, alheios as desgraças (...)? Tentando iluminar as mentes, chamo para o “baile”, Seth Godin e seu livro “O melhor do mundo”.

“É mais fácil ser medíocre do que enfrentar a realidade e desistir.
Desistir é difícil. Desistir exige que você reconheça que jamais será o número 1. Pelo menos não na sua área de atuação. Então é muito mais fácil continuar, não admitir suas limitações e aceitar a mediocridade.
Que desperdício.”
Seth Godin, O melhor do Mundo, pg.38

NÃO DESISTIR REVELA UM POSSÍVEL COMPLEXO DE MESSIAS

A psicóloga Raquel Baldo – CRP 79518/SP – define o complexo de messias da seguinte forma:

“...trata-se de um estado psicológico onde a pessoa acredita que é ou será uma figura de extrema importância para o meio que vive ou mesmo para o mundo. É também muito comum se nomearem salvadores, pois sentem que são indivíduos enviados ou escolhidos por uma força maior ou por Deus para uma ou mais missões para com o mundo. E pelo fato de que no geral suas missões carregam uma forte característica religiosa, é muito comum que estas pessoas encontrem conforto nas ideias, reforço nas atitudes e até apoio ou seguidores nos meios que vivem mais intensamente uma religião, seja ela qual for. Mas vale ressaltar logo de início que este complexo não está relacionado ou mesmo é causado pela religiosidade ou por uma religião.”

Resolvi reproduzir a definição de Raquel sobre essa síndrome, por entender que a maioria de nós, professores, sofre dela em relação aos alunos problema. Via de regra, não queremos desistir deles, mesmo adoecendo por causa deles, pois achamos que insistindo na tentativa de recupera-los estaremos agindo como salvadores de suas vidas – e também do nosso ofício; mas na verdade, esse comportamento “salvador” mostra o quanto a angustia de não conseguirmos dar “uma aula que preste” pela presença desses alunos em sala já nos afetou. Agimos como em um “cabo-de-guerra”, eles puxam para um lado e nós puxamos para o outro; eles gritam que desistiram de si mesmo e nós dizemos que não desistiremos deles. Que doidice.

Se você for um religiosos, imagino que possa estar passando por sua cabeça a parábola da “ovelha perdida”, contado por Jesus a um grupo de religiosos racistas e preconceituosos. O episódio está registrado no Evangelho de Lucas:

“E chegavam-se a ele todos os publicanos e pecadores para o ouvir. E os fariseus e os escribas murmuravam, dizendo: Este recebe pecadores, e come com eles. E ele lhes propôs esta parábola, dizendo:
Que homem dentre vós, tendo cem ovelhas, e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e nove, e não vai após a perdida até que venha a achá-la? E achando-a, a põe sobre os seus ombros, gostoso; e, chegando a casa, convoca os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque já achei a minha ovelha perdida.
Digo-vos que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.”
Lucas 15:1ss

Se você não souber ler, vai achar – acredito que pensa assim – que Jesus disse para nunca desistirmos dos “desgarrados”, mas o Messias nunca disse isso. Ele revelou o comportamento preconceituoso e sectário dos religiosos, com uma fábula. Observe que Jesus identifica-os usando “que homem dentre vós”, ou seja, “qual de você”; e mais, o mestre faz uma provocação em seguida. Ele questiona a capacidade de arrependimento dos religiosos. Na fábula contada por Jesus, o “pastor”, só parte em busca da “ovelha desgarrada”, depois que as demais estavam em lugar seguro; porém esse relato é apenas uma fábula, a moral da historieta contada por Jesus é que os religiosos, que também estavam representados pela “ovelha perdida”, precisavam de arrependimento, caso não se arrependessem de seu comportamento sectário, comparavam-se às 99 ovelhas que não precisavam de arrependimento.

Mesmo entendendo que o possível argumento bíblico levantado por você para insistir na recuperação dos alunos problema mostra a manifestação do complexo de messias, resolvi usá-lo para demostrar o erro na interpretação do texto. Perceba que o fato principal da fábula está centrado do arrependimento do infrator. Aplicando à realidade apresentada, o possível arrependimento do aluno problema e seu retorno ao convívio construtivo da escola, será recebido com “alegria no céu” por todo o corpo docente da Escola.

Ainda no viés bíblico, devo mencionar que Jesus nunca insistiu em nenhum de seus seguidores. Lembremos de Judas que mesmo convivendo por três anos com o Mestre, era um “aluno problema”, tão problema que não aprendeu nenhuma aula. O resultado prático desse fato, todos já conhecem.

Outro fato interessante ocorreu anos antes, na cidade em que Jesus morava, Cafarnaum. Voltando para sua casa, sua cidade, sua família, poucas pessoas creram em seu ensino e menos ainda foram curadas de suas enfermidades (Marcos 6:4 a 6). No texto de Marcos, depois de ver a incredulidade das pessoas, Jesus não insistiu com elas, desistiu delas e seguiu para outra cidade. Devo lembrar, que algumas daquelas pessoas que foram “abandonadas” por Jesus, faziam parte de sua família.

ELES SÃO OS DONOS DO TERRITÓRIO

Uma das situações que percebo no trato com esses alunos problema, é que eles nos chamam para o “território” deles. Nele, eles são os reis, o centro das atenções, tudo gira em torno deles; seu poder sobre o sistema escolar é tanto, que tudo para por causa deles, todos olham para suas loucuras, alguns até admiram suas bravatas. Nós, assistimos tudo amarrados e amordaçados por uma legislação que protege delinquentes. Desistir desses sociopatas infantis é necessário. Mas como?

Não sei. Mas é necessário.

Quando confrontamos um aluno problema, ele não nos segue, nós o seguimos; ele não vai até nosso “território”, nós é que vamos ao “território” dele e lá, ele é quem manda. Onde é esse “território”? Em sua mente, em seu universo, em seus argumentos. Eles nunca aceitam nossos argumentos, nunca entram em nosso universo, nunca entendem o que falamos. Fazem pouco de nós e das nossas tentativas em recupera-los.

Precisamos limpar as escolas dessas pessoas nocivas ao convívio sócio educativo, precisamos ter a coragem de desistir; mesmo que criemos um lugar para sejam tratados de forma diferenciada – porque são diferentes –, por pessoas preparadas. Desistimos deles no convívio geral e insistimos de outra forma (...), será que daria certo? Não sei.

Temos que ter a coragem de desistir e mais ainda, deixar isso claro a eles, sem agredi-los com palavras; eles precisam saber que desistimos.

Termino esta reflexão com uma frase do mestre Saramago:

“Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro.”
José Saramago


Então, que sigam seu caminho, que eu sigo o meu. Não tentarei convencê-los de nada, não tentarei coloniza-los de nada. Acho que será assim.

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